Realidade e representação no filme documentário

Estabelecer limites entre ficção e realidade, entre o autêntico e a sua representação e se de fato existe essa distinção são questões presentes desde a origem da discussão sobre o documentário como gênero. Assim, como lembra Bill Nichols, o realismo cinematográfico é um conceito dinâmico, que se transforma e exige constantemente elaboração de novas estratégias de representação, seja no documentário ou na ficção:

Vale a pena insistir no fato de que as estratégias e os estilos utilizados no documentário, assim como os do filme narrativo, mudam. Eles têm uma história. E mudam em grande parte pelas mesmas razões: os modos dominantes do discurso expositivo mudam, assim como a arena do debate ideológico. O realismo confortavelmente aceito por uma geração parece um artifício para a geração seguinte. Novas estratégias precisam ser constantemente elaboradas para representar “as coisas como elas são”, e outras para contestar essa representação. (NICHOLS, 2005[b], p.47)

O final do século XIX viu surgir as imagens técnicas – a fotografia e o cinema – e desde então diversas discussões teóricas procuraram discutir o conceito de realismo e a impressão de realidade causada por essas imagens. Na tradição teórica sobre o cinema, destacam-se as contribuições de André Bazin, no célebre texto “Ontologia da imagem fotográfica”, incluído no livro Qu’est-ce que le cinéma?, no qual discute a objetividade essencial das imagens fotográficas e cinematográficas, determinada por sua gênese automática que lhes confere credibilidade e que subverte totalmente a psicologia das imagens, pois satisfaz completamente a necessidade de ilusão, o desejo de “substituir o mundo exterior pelo seu duplo” (BAZIN, 1991, p.20).
A característica indexadora da imagem fotográfica, que advém da conexão física existente entre a imagem e seu referente, é o que produz essa sensação de realismo fotográfico. Para Bill Nichols, o realismo é, na verdade, um estilo que se apresenta de três formas importantes para o cinema documentário: (1) realismo fotográfico ou físico ou empírico, produzido “por meio da fotografia de locação, da filmagem direta e da montagem em continuidade, em que são minimizados os usos distorcidos e subjetivos da montagem defendidos pela vanguarda”; (2) realismo psicológico, que “implica a transmissão dos estados íntimos de personagens e atores sociais de maneira plausível e convincente”; e (3) realismo emocional, que cria “um estado emocional adequado no espectador” (NICHOLS, 2005[a], p. 128).

Para Gerard Betton, o conceito de realismo no cinema é muito amplo e vago. Usando o fenômeno da percepção como ponto de partida, o autor enfatiza que “a imagem fílmica suscita certamente um sentimento de realidade no espectador, pois é dotada de todas as aparências da realidade”, mas o que aparece na tela é sempre “um aspecto (relativo e transitório) de uma realidade estética que resulta da visão eminentemente subjetiva e pessoal do realizador” (BETTON, 1987, p. 9).
Em relação à representação no documentário, Jacques Rancière coloca em dúvida um tipo de diagnóstico que se consolidou também na pesquisa cinematográfica e que se fundamentou numa visão simplista da arte, ao considerar certos fenômenos artísticos contemporâneos relacionados ao documental como um retorno à representação direta da realidade. Para Rancière, tal visão é ultrapassada, já que a modernidade artística não pode ser reduzida simplesmente a um movimento sistemático de abandono do realismo representativo em benefício dos formalismos da arte pela arte, inclusive porque o primeiro abalo da ordem representativa se chamou realismo e não abstração. Diz o autor que o realismo não se constituiu

[...] uma fuga formalista diante das exigências da visão, mas, ao contrário, uma forma de sublinhar as convenções e a hierarquia da representação, aproximando mais a lente tanto do romancista quanto do pintor e do fotógrafo, situando-a num ponto de vista mais íntimo, que suspende a lógica das histórias e a tradutibilidade do legível em visível ao se fixar no enigma de um rosto ou de uma vida anônimos (RANCIÈRE, 1998, p. 3).

Segundo Rancière, o que dá corpo à ficção não é a invenção de uma história, mas a construção de uma rede de signos capazes de quebrar a lógica das imagens e a associação de palavras às coisas; capazes de romper com os encadeamentos familiares de imagens e de significados ao remeter à nudez da imagem e à indagação sobre a possibilidade de reunir estes significados num sentido histórico (Ibid., p.3).
A ideia de representação é essencial para o filme documentário. Conforme aborda Nichols, os chamados documentários, ou filmes de não-ficção, são especificamente aqueles que tratam das representações sociais. Aqueles que,

[...] tornam visível e audível, de maneira distinta, a matéria de que é feita a realidade social, de acordo com a seleção e a organização realizadas pelo cineasta. Expressam nossa compreensão sobre o que a realidade foi, é e o que poderá vir a ser. Esses filmes também transmitem verdades, se assim quisermos. Precisamos avaliar suas reivindicações e afirmações, seus pontos de vista e argumentos relativos ao mundo como o conhecemos, e decidir se merecem que acreditemos neles. Os documentários de representação social proporcionam novas visões de um mundo comum, para que as exploremos e compreendamos (NICHOLS, 2005[a], p.26-7).

Para este autor, o documentário engaja-se no mundo pela representação, fazendo isso de três formas: (1) oferecendo uma representação reconhecível do mundo – mesmo que as imagens não possam dizer tudo sobre o que aconteceu e mesmo que possam ser alteradas por meios convencionais e digitais; (2) significando ou representando os interesses dos outros; e (3) representando o mundo, colocando diante de nós a defesa de um determinado ponto de vista ou uma determinada interpretação das provas (Ibid., p.28-30).
É a ideia de representação, assim, que leva tal autor a defender que a formação profissional do documentarista deve passar pelo desenvolvimento do respeito ético. Ou seja, as questões éticas são fundamentais nos documentários, sendo “uma medida de como as negociações sobre a natureza da relação entre o cineasta e seu tema têm consequências tanto para aqueles que estão representados nos filmes como para os espectadores”. (Ibid., p. 36).
Brian Winston, em Claiming the real, propõe uma revisão histórica das pesquisas sobre o gênero documentário, tendo em vista as transformações provocadas pelo desenvolvimento tecnológico e pela imagem digital. Para reescrever a história do documentário, Winston revisa conceitos sistematizados desde Paul Rotha, a partir das relações incluídas na expressão celebrizada por John Grierson, de que o documentário é um “tratamento criativo da realidade” (WINSTON, 1995). O autor aponta a necessidade de uma discussão sobre a ética, já que para ele o que distingue o filme de ficção do documentário é essencialmente a base ética sobre a qual deve se fundar a prática documentarista.
Também o trabalho de Carl Plantinga, Rhetoric and representation in nonfiction film segue essa linha de investigação, pois se propõe a analisar a natureza e a função dos filmes documentários a partir de um exame filosófico de seu discurso e suas formas de representação. O objetivo do autor é o de caracterizar os quadros de mudança e estudar o lugar do documentário no mundo social e nos discursos ideológicos, cruzando pesquisas da história, da crítica e da teoria de cinema. Assim, discute importantes instrumentos conceituais, como os aspectos indexicais e simbólicos da imagem técnica, relacionados à complexidade da retórica documental. Plantinga tem como referência os trabalhos de Barthes, Peirce, além de outros pesquisadores do cinema, como Erick Barnouw, Brian Winston e Michael Renov (PLANTINGA, 1997).
No Brasil, um artigo de Paulo Menezes, centrado numa abordagem sociológica do cinema, também vem contribuir para (re)pensar o conceito de representação no documentário, a partir da ideia de “representificação”, termo considerado mais adequado por este autor. Para chegar ao novo termo, em sua investigação sobre os fundamentos da relação entre a imagem e a realidade, mostra os caminhos diversos que os pesquisadores percorreram para “dar conta de uma relação que comporta uma dose suficiente de ambiguidade [...] e uma flutuação de sentidos na apropriação de conceitos como reprodução, representação e duplo” (MENEZES, 2004, p. 33), que ao final se misturam.
Menezes não desenvolve o conceito de reprodução, mas deixa evidente tratar-se da idéia de uma correspondência exata entre a realidade e a imagem. Já sobre o conceito de representação, refaz o percurso do termo desde a Idade Média, período em que significava ao mesmo tempo “imagem” e “idéia”. Em Santo Tomás de Aquino, “representar é conter a semelhança da coisa” (Ibid., p. 25). Em Foucault, na obra As palavras e as coisas (1981), encontram-se as diversas concepções que o termo semelhança comportou até o final do séc. XVI, como assimilação, analogia e simpatia, sendo ao final “vista como uma qualidade comum, na forma de substrato da representação” (Ibid., p. 26).
A seguir, examina as formulações de Gombrich[1], para quem a representação é construída a partir da relação de uma imagem com outras imagens”, em dois sentidos diferentes. Num primeiro sentido, “a passagem de uma imagem para outra se faz pela mediação de uma ideia, de uma ‘imagem mental’”. [...] A referência primeira de uma imagem não seria a coisa representada em si, mas a ideia concebida (pré-concebida) sobre a coisa” (Ibid., p.26). Num segundo sentido, tomando, por exemplo, a representação de um castelo,

[...] a transposição de imagens se daria por meio de códigos reconhecíveis, uma espécie de ‘vocabulário da semelhança’, onde o ponto de partida seriam ‘outras imagens reconhecíveis’ de castelos e não a observação direta de qualquer castelo. As duas acepções propostas por Gombrich deixam evidente que “entre a coisa e a representação da coisa há sempre a mediação de um conceito, uma ideia, uma representação mental ou até mesmo uma regra” (Ibid., p. 26-27).

Menezes desenvolve, a partir de Pierre Francastel, o conceito de espaço de representação dominante a partir do Renascimento: “o espaço em forma de cubo, o cubo cenográfico, que transforma completamente a disposição dos elementos em uma representação, a partir da introdução do ponto de vista único de observação”. O ponto de vista único implica, assim, a existência de um lugar correto para se obter um olhar perfeito sobre a representação e a partir dela sobre as coisas. “Não existe, portanto, possibilidade alguma para uma multiplicidade de olhares”, para uma “interpretação diferencial” (Ibid., p. 27).
Entretanto, mesmo existindo na predominância de um olhar fixo e imóvel, a representação não se colocaria como mera reprodução do real, mas como uma pista,

[...] um indício para se compreender como aquele real se constituiria em imagem. Ao mesmo tempo [...], em nenhum momento se coloca em qualquer nível a questão da parecença, qualquer tipo de necessidade de a representação ser “parecida” com o que ela retrata [...]. Assim, pensar a representação não significa de modo algum concebê-la como réplica, como clone, como reprodução igual de um real que lhe seria exterior mas que ao mesmo tempo lhe seria idêntico, cópia fiel de todos os seus detalhes e, principalmente e mais importante, de todos os seus atributos (Ibid., p. 27).

O último conceito apresentado é o de duplo, visto como “algo que se coloca no lugar de”, estando sua significação sempre associada a um valor ritual. Nesta acepção, a semelhança física também não é um atributo objetivado. Como observa Bazin, já citado anteriormente, o duplo é visto como categoria psicológica, como um elemento que estabelece verdadeira ligação e comunicação entre dois mundos (Ibid., p. 28-29).
Os significados de reprodução, representação e duplo são alterados no decorrer do século XIX, quando há uma transmutação e convergência de sentidos. Assim, especialmente a partir do surgimento da fotografia, a percepção do que seria o termo semelhança transforma-se radicalmente. A fotografia difundiu, como disse Benjamin, uma “obsessão pela semelhança” (BENJAMIN, 1985). O que se
[...] entendia então por semelhança teve seus sentidos a um só tempo reduzidos e transformados em um outro que não possuía, por um processo de sucessivas mutações, que encontrou no advento e disseminação da fotografia o seu ponto culminante e irreversível. O semelhante, por fim, transforma-se no parecido. O que até então não era de forma alguma fundamento das noções de representação e duplo torna-se uma de suas mais indissociáveis características. Ao fim deste processo confundem-se definitivamente representação, duplo e reprodução. [...] Esvaziado de suas características rituais o duplo se transforma em reflexo, e, por isso, tenta ser parecido. O duplo, finalmente, vira clone (MENEZES, 2004, p. 30).

Para Menezes, mesmo que seja claro que o cinema não reproduz a realidade, deve-se levar em conta que a imagem do filme guarda uma relação com o real, diferente da expressa nas três noções anteriores, “fundada que está na ambiguidade fundamental desta relação entre imagem e real”. (Ibid., p. 30) Menezes chama esta relação de “coeficiente de realidade”, lembrando o que Morin já havia definido como “impressão de realidade”, que cria um realismo fundado em um logro de algumas formas aparentes. O autor também lembra as acepções de Merleau-Ponty, de “realismo fundamental”; de Pierre Sorlin, de “impressão de verdade”; e de Pierre Francastel, dos “mecanismos da ilusão fílmica” (Ibid., p. 29-31).
Podemos estabelecer certa aproximação das ideias de Menezes com a visão de Bill Nichols, quando este ressalta que nosso acesso à realidade histórica só pode se dar por meio das representações, mas estas representações não impedem a persistência da história como uma realidade. Assim, para Nichols, é “bastante possível aceitar o grão de verdade sobre a imoralidade das imagens. [...] De crucial importância é que a realidade da dor e perda que não são parte de qualquer simulação, na realidade, é o que faz a diferença entre representação e realidade histórica” (NICHOLS, 1991, p.7)[2].
Pensando as imagens do filme documentário a partir das ideias de Benjamin e de Francastel, Menezes aponta um deslocamento do que entendemos como semelhante no filme – não importa se visto como reprodução, representação ou duplo – “de sua relação imediata entre imagem e coisa fotografada para o caráter construtivo desta mesma imagem” (MENEZES, 2004, p. 38). Para Benjamin, o que olhamos no mundo é sempre diferente do que olhamos nas imagens; para Francastel, “a imagem existe em si, ela existe essencialmente no espírito, ela é um ponto de referência na cultura e não um ponto de referência na realidade” (FRANCASTEL, 1982, p.193). Assim:
Podemos conceber um desvio analítico na investigação das imagens, que se deslocaria de sua própria realidade como imagem, e de qualquer “real” exterior a ela que lhe serviria de “modelo” ou estímulo, para os valores e as perspectivas que orientaram a sua própria constituição como imagem (MENEZES, 2004, p.39).

Para Menezes, em relação ao filme documentário é exatamente essa a questão sempre esquecida. Nas tentativas de classificação do gênero e de legitimação de um discurso “autêntico”, “verdadeiro” esquece-se do essencial: “os elementos constitutivos da percepção desse discurso como construção, sempre como construção, e, portanto, como sendo sempre parcial, direcionado, e, no limite, interpretativo” (Ibid., p. 44). 
O fato de o cinema documentário ter nascido exatamente num momento de predominância do positivismo, portanto de um ideal de objetividade que também marcou a ideia de representação desde o Renascimento, traz embutida a idéia de “verdade”, e não de semelhança entre uma coisa e sua imagem. Assim o autor afirma a impropriedade dos conceitos de representação, reprodução e duplo para pensar as imagens fílmicas e especialmente as imagens do documentário, que, por sua vez, só podem ser pensadas em suas relações entre cinema, real e espectador.

Proponho que se entenda a relação entre cinema, real e espectador como uma representificação, como algo que não apenas torna presente, mas que também nos coloca em presença de, relação que busca recuperar o filme em sua relação com o espectador. O filme, visto aqui como filme em projeção, é percebido como uma unidade de contrários que permite a construção de sentidos. Sentidos estes que estão na relação, e não no filme em si mesmo. O conceito de representificação realça o caráter construtivo do filme, pois nos coloca em presença de relações mais do que na presença de fatos e coisas (Ibid., p.44).

Apoiado na ideia do cinema como acontecimento (Foucault) e do tempo como entrecruzamento e não como sucessão (Benjamin), a “representificação seria a forma de experimentação em relação a alguma coisa, algo que provoca reação e que exige nossa tomada de posição valorativa, relacionando-se com o trabalho de nossas memórias voluntária e involuntária que o filme estimula” (Ibid., p. 45).


[1] GOMBRICH, Ernst H. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. Tradução de Raul de Sá Barbosa. 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

[2] It is quite possible, however, to accept the grain of truth about the immorality of images. […] The reality of pain and loss that is not part of any simulation, in fact, is what makes the difference between representation and historical reality of crucial import­ance (NICHOLS, 1991, p.7).