Entre o cinema e a antropologia

Antropologia visual, antropologia fílmica, antropologia do audiovisual, antropologia da imagem... Todos esses termos e tantos outros remontam às tentativas de constituição de um campo específico na antropologia relacionado ao universo da imagem técnica.[1]
A elaboração dos métodos clássicos da antropologia, que a constituíram como disciplina científica, e a consolidação da fotografia e do cinema como uma linguagem específica, remetem originalmente a um mesmo contexto histórico e social: o século XIX:

O século XIX, em seu contexto social e histórico, marcado pela busca da compreensão e assimilação do mundo pelos europeus, caracteriza o surgimento e a consolidação da etnografia e dos registros visuais, como a fotografia e o cinema, apontando para questões fundamentais sobre essas formas de representação da realidade social. As expedições científicas multidisciplinares e as técnicas fotográficas e fílmicas, que se multiplicam a partir dessa época, vão possibilitar o registro de acontecimentos de um mundo mais amplo que o delimitado pelo continente europeu e permitir a apreensão da diversidade racial e social (BARBOSA; CUNHA, 2006, p.17).

Assim, mesmo antes dos termos documentário e etnografia existirem como categorias, a investigação científica e a tentativa de legitimar a organização do mundo sob um “olhar ocidental” aproximaram a antropologia das imagens técnicas, consideradas a princípio como uma questão de método. Como produtos técnicos, as imagens garantiriam “um caráter de objetividade ao materializar corpos e hábitos que se tornam assim passíveis de catalogação e classificação” (Ibid., p. 18).
Como discutem diversos autores, entre eles Sylvia Caiuby Novaes, a imagem foi sempre relegada a segundo plano nas análises dos fenômenos sociais e culturais. Porém, como os textos, as imagens são artefatos culturais que permitem reconstituir a história cultural dos grupos sociais e compreender os processos de mudança social.

Assim, o uso da imagem acrescenta novas dimensões à interpretação da história cultural, permitindo aprofundar a compreensão do universo simbólico, que se exprime em sistemas de atitudes por meio dos quais grupos sociais se definem, constroem identidades e apreendem mentalidades (NOVAES, 1998, p. 116).

Para Andréa Barbosa e Edgar Teodoro da Cunha, o desenvolvimento paralelo da pesquisa antropológica e da linguagem cinematográfica demarcou pontos de contato e consolidou uma prática audiovisual diversificada no campo antropológico:

Imagem como método ou técnica adotados na pesquisa de campo, dado bruto de pesquisa ou registro, expressão de um processo de pesquisa e ainda a imagem, ou narrativas visuais e audiovisuais, como objeto de análise para a antropologia são alguns dos caminhos abertos nesse sentido (BARBOSA; CUNHA, op. cit., p. 49).

Etnografia e visualidade


A etnografia ocupa um lugar central na formação da antropologia social e cultural no mundo contemporâneo. Disciplinarmente ela é vista como um método, usualmente associado ao “trabalho de campo” e à “observação participante”, que busca reconstituir, de forma mais fiel possível, a vida dos grupos estudados. Embutidas aí estão as contribuições de B. Malinowsky e Lévi-Strauss, por exemplo.
Porém, a etnografia assumiu diversas formas e significados, variando segundo suas relações com o contexto histórico e cultural, de acordo com diversas elaborações teóricas que continuamente repensam o fazer antropológico. Para este trabalho, e em relação à etnografia, tornam-se significativas particularmente as proposições de dois autores: James Clifford e Clifford Geertz.
Para James Clifford, a etnografia, por ser uma “atividade híbrida”, não pode ser definida como um método, mas como “um campo articulado pelas tensões, ambigüidades e indeterminações próprias do sistema de relações do qual faz parte” (CLIFFORD, 1998, p.10). Também Clifford Geertz problematiza o entendimento da prática etnográfica, que para ele é uma “descrição densa”[2] voltada para uma complexa hierarquia de estruturas significantes. Assim, o que o etnógrafo enfrenta, em todos os níveis de seu trabalho de campo, “é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas [...] que ele tem que, de alguma forma, primeiro aprender e depois apresentar” (GEERTZ, 1989, p.7).
Numa atitude comum entre os antropólogos pós-modernos, James Clifford analisa a multiplicidade de “mãos” e “vozes” do discurso etnográfico, ressaltando a diversidade dos seus processos de construção a partir do questionamento da noção de “autoridade etnográfica”, que em suas várias modalidades legitimam formas diversas de conhecimento. Para analisar essas modalidades, Clifford recorre primeiramente à Malinowsky, responsável pela fundação de um modelo hegemônico na primeira metade do século XX: a etnografia centrada na experiência do pesquisador que observa e participa. Esta é, pois, a primeira modalidade de autoridade, na qual se conjugam, nesta “observação participante”, a experiência individual e a análise científica.
Explica Clifford que a segunda modalidade surge como crítica ao predomínio da experiência e se fundamenta na hermenêutica. A prioridade dada à interpretação desmistifica a objetividade da construção das descrições etnográficas, e dá ênfase aos processos criativos pelos quais os objetos culturais são vistos como significativos. Para Clifford, a “observação participante” deve ser repensada como uma dialética entre experiência e interpretação (CLIFFORD, 1998, p. 33-34).
Nessa segunda modalidade, a etnografia é vista como negociação permanente entre etnográfo-informante, onde ambos são sujeitos conscientes e politicamente significativos (Ibid., p.43). Este modelo recusa a escrita como um monólogo sobre os “outros”, incorporando elementos intersubjetivos à etnografia. Assim, constitui-se uma etnografia discursiva voltada para a interlocução e os contextos em que a pesquisa se desenvolve, contribuindo “para uma crescente visibilidade dos processos criativos [...] pelos quais objetos ‘culturais’ são inventados e tratados como significativos” (Ibid., p.39).
Clifford Geertz é apontado como o grande expoente dessa proposta: “a etnografia é a interpretação das culturas” (Ibid., p.40). A elaboração da etnografia se faz num espaço fora do trabalho de campo, onde os dados coletados são traduzidos num texto e depois numa narrativa. Assim, a cultura é tomada como um “texto” passível de interpretação, onde comportamentos, crenças, tradições e acontecimentos cotidianos são vistos como um conjunto potencialmente significante (Ibid., p. 39).
Essa segunda proposta de autoridade, funda, de acordo com Clifford, um sub-gênero com duas formas: dialógica – um diálogo em que interlocutores negociam ativamente uma visão compartilhada da realidade – e polifônica – para representar a autoria dos informantes deve-se produzir uma escrita que represente o etnógrafo e o nativo com vozes diferentes, que aceite o não-controle dos dados obtidos e a multisubjetividade envolvida no trabalho de campo e na construção do texto (Ibid., p.45-54).
Das quatro formas de autoridade descritas sucintamente acima, surge a noção de James Clifford da etnografia como alegoria, uma construção ficcional do “outro”, e da etnografia como “escrita”, no sentido utilizado por Jacques Derrida, que vai muito além do texto, incluindo as mais diversas experiências e práticas sociais (Ibid., p.14).
Como vimos, essa problematização levantada por Clifford e Geertz leva em conta um determinado conceito de cultura, oposto ao de uma entidade isolada e autônoma, que deve ser relativizado.

Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado (GEERTZ, 1989, p.4). 

Entretanto, apesar de suas contribuições relevantes para a prática da pesquisa, a preocupação exclusiva dos etnógrafos pós-modernos com a semiótica do significado deixou de considerar “o fato de que a etnografia também reflete e transforma a teoria antropológica”, como afirma Bela Feldman-Bianco (FELDMAN-BIANCO, 1998, p. 290). O próprio Geertz reconhece isso ao afirmar que compreender a etnografia leva a compreensão da própria antropologia como forma de conhecimento (Id., p.4).
É na abertura de tais discussões que o uso da imagem na antropologia e no documentário contemporâneo, deva ser pensado como uma possibilidade que não pode mais ser ignorada. Muitos já se debruçaram sobre o papel determinante que as imagens assumiram no trabalho antropológico, mesmo quando só são utilizadas para ilustrar os textos escritos. Esse interesse crescente pelas imagens parece ter razões diferenciadas para os pesquisadores. Para W.J.T. Mitchel, esse “pictorial turn” foi uma reação ao intenso foco lingüístico do estruturalismo pós-guerra, pós-estruturalismo, desconstrução e semiótica (Apud MACDOUGALL, 1998, p.61). Outros apontam como razão o questionamento, dentro da antropologia, de formas mais apropriadas à descrição etnográfica.
Para Bela Feldman-Bianco, o interesse pela linguagem visual pode ser entendido como “uma resposta à falência de paradigmas positivistas e à importância da mídia na vida cotidiana” (Ibid., p.11). Esta idéia parece pertinente, já que a imagem midiática – especialmente fotografia, cinema e vídeo – molda valores fundamentais de nossa cultura, influenciando cada vez mais intensamente nossa vida diária. Assim, produzir e analisar imagens pode levar ao entendimento dos valores e transformações culturais de um grupo ou sociedade.
Porém, independente dos motivos, o fato é que a representação visual passou a ser vista pelos antropólogos como uma alternativa para o trabalho etnográfico, seja “como tema, como fonte documental, como instrumento, como produto de pesquisa ou, ainda, como veículo de intervenção político-cultural” (Ibid., p. 11). O uso sistemático das imagens incentivou a organização de acervos de imagem e núcleos de pesquisa e ganhou um significado interdisciplinar que consolidou, na década de 1990, o que se convencionou chamar “antropologia visual”, seguindo o termo usado por Margaret Mead em 1973.[3] De forma geral, outros termos se consolidaram, como “antropologia fílmica”, “antropologia das imagens”, “antropologia audiovisual”, dentre outros.

Considerações sobre o documentário etnográfico


A produção documentarista sempre foi um dos pontos focais da diversidade de expressões culturais e dos olhares sobre a realidade histórica, estabelecendo um intenso diálogo com as ciências humanas, os movimentos sociais e grupos étnicos, e direcionando as reflexões sobre a organização social e política na educação ou na implementação de políticas governamentais, em vários países e períodos.
Podemos considerar, assim, que todo filme, como produto da consciência humana, é útil à história e antropologia, já que contém informações que podem se tornar dados para pesquisa e/ou ensino, tanto sobre a cultura do produtor como sobre a cultura do tema, permitindo descobrir o jogo de regras culturalmente específicas que informam sua produção.
Entretanto, uma categoria específica de filmes etnográficos se firmou na história do cinema, desenvolvendo-se a partir do trabalho de vários cineastas-antropólogos. Essas produções, embora diferenciadas,

[...] têm em comum o fato de tomarem como ponto de partida a observação do real, mesmo que, às vezes, essa observação seja algo provocada e que a maneira como o real é apresentado possa, de vez em quando, buscar inspiração em alguns procedimentos próprios ao filme de ficção” (FRANCE, 2000, p. 17).

O termo cinema etnográfico foi usado por John Grierson, em 1926, para nomear uma produção criativa, distinta das descrições de viagens, dos noticiários e filmes de atualidade. Como dado bruto de registro de uma pesquisa, imagens de uma mulher africana fabricando um pote de cerâmica, em 1885, estabeleceram as primeiras relações entre antropologia e cinema. As imagens foram feitas por Félix-Louis Regnault, membro da Sociedade de Antropologia de Paris com o intuito de realizar um estudo comparado do comportamento humano e se inserem nas experiências cronofotográficas de Jules-Étienne Marey e Edward Muybridge, precursores do cinema (BRIGARD, 1975).
Regnault havia feito vários registros na África e sugeriu a criação de um arquivo de filmes antropológicos nos museus etnográficos. Antes de Regnault, segundo Demetrio Brisset, um precedente é encontrado na obra de Edward S. Curtis, que por mais de 30 anos realizou documentários sobre os índios norte-americanos (BRISSET, 1989).
Na mesma linha de análise, em 1898, são feitos primeiros filmes sobre o trabalho de campo, na expedição ao estreito de Torres que congregou especialistas de diversas áreas, coordenados por Cort Haddon, da Universidade de Cambridge (Ibid., p. 16). Entretanto, para Brian Winston, o filme não era ainda considerado parte integrante do trabalho etnográfico, talvez em função das dificuldades tecnológicas (WINSTON, 1995, p. 170).
Alguns pesquisadores apontam os antropólogos Patrick O’Reilly (com o filme Bougainville, 1934) e Marcel Griaule como os pioneiros do cinema etnográfico, nos anos 1930. Griaule foi um dos primeiros etnólogos a utilizar a imagem animada como auxiliar da pesquisa etnográfica. Sua obra Masques dogon (1938), primeira tese de doctorat ès-lettre em etnologia defendida na França, contém, além de um disco, uma descrição dos ritmos de danças fúnebres elaborada graças à superposição de uma pauta musical que transpõe os ritmos das percussões e de fotogramas desenhados a partir de seu filme Sous les masques noirs. Os fotogramas reproduzem os movimentos dos dançarinos e correspondem às indicações da pauta musical (LOURDOU, 2000, p. 101). Coube a Margaret Mead e Gregory Bateson (1936-38), utilizarem efetivamente a imagem para a análise cultural do comportamento. Antes de Mead e Bateson, Malinowski dera ênfase ao uso do filme como recurso técnico para a pesquisa, mas não de forma tão contundente.
O fato é que, a partir dessas primeiras experiências, os diversos métodos audiovisuais têm sido utilizados pela antropologia como instrumentos de observação, transcrição e interpretação de realidades sociais diferentes e como instrumentos para ilustração e difusão das pesquisas, conforme Marc-Henri Piault (PIAULT, 1994).
Mas como técnica antropológica, o filme etnográfico só se diferencia do gênero documentário com o trabalho de Marcel Mauss, que incentivou seu uso junto a jovens antropólogos franceses.

O artístico será deixado em segundo plano, como um subjetivismo deletério à observação científica, que deveria se sustentar em uma base objetiva indiscutível. O realizador deveria procurar, então, retratar a realidade do Outro com diferentes recursos formais disponíveis ao cinema da época: a montagem, por exemplo, deixa de fazer sentido, assim como a noção de ritmo, que deixa uma impressão de distorção à ordem cronológica e ao processo de duração do real (PEREIRA, 2005).

Para David MacDougall, em relação à elaboração teórica, foi André Leroi-Gourhan quem identificou, em 1948 – na primeira conferência sobre o filme etnográfico realizada no Musée de l’Homme e que reuniu grande número de antropólogos-cineastas –, um conjunto que nomeou “filmes etnográficos”, para designar aqueles filmes que descreviam sociedades diferentes das dos autores. E só mais tarde a idéia de um cinema de “ciência cultural” foi aceita pelos antropólogos (MACDOUGALL, 1998, p. 52).
Em relação à prática, devemos ressaltar as limitações impostas aos filmes etnográficos realizados antes do surgimento, na década de 1960, dos instrumentos portáteis de gravação sincronizada do som e da imagem. Para Claudine de France, estes filmes tinham um campo limitado:

O campo do filme etnográfico limitou-se, assim, àquilo que chamaria base clássica da disciplina: a descrição da ação do homem sobre o meio ambiente (técnicas materiais), da qual o filme The hunters, de John Marshall (1956), é um ótimo exemplo; os rituais cotidianos ou cerimoniais de ação do homem sobre os deuses (danças, sacrifícios etc.), dos quais são testemunha os filmes de Marcel Griaule (...); as técnicas de ação sobre o corpo (...), tal como filmaram Margaret Mead e Gregory Bateson (FRANCE, 2000, p. 23).

Em relação ao procedimento metodológico, consolidaram-se várias regras para a produção cinematográfica voltada à prática antropológica. Por exemplo, por razões éticas, existem limites quanto ao que pode ser dito e revelado sobre a realidade estudada. Deve-se, também, saber discernir as diferenças de códigos culturais do próprio antropólogo, dos sujeitos da sua pesquisa e do público.[4]
O cinema etnográfico pode ser definido, então, como a produção antropológica, realizada com a intenção de ser um documento histórico, um “instrumento heurístico por meio do qual se pode conhecer os homens, as sociedades, as culturas, e registrar o sentido histórico que estes finalmente cumprem” (PEREIRA, 2005). Segundo Claudine de France, “colocar em evidência os fatos que são impossíveis de estabelecer somente com a observação direta assim como descrever aqueles dificilmente restituídos pela linguagem constituem as duas funções principais do filme etnográfico” (FRANCE, 1998, p. 22).
Jay Ruby defende uma posição mais estreita, segundo a qual um filme é etnográfico somente quando apresenta uma visão antropológica ou declaração sobre o mundo, estando sujeito ao mesmo exame científico rigoroso e crítica como qualquer outro produto da antropologia. O filme deverá ser considerado como produto de um estudo antropológico, que busca a compreensão das culturas humanas. Ruby alerta que a tendência por parte de alguns antropólogos de comparar qualquer filme sobre pessoas com etnografia é um impedimento sério para o desenvolvimento de meios científicos de comunicação visual (RUBY, 1975).
De forma a clarificar os elementos que compõem uma etnografia, Ruby enumera os seguintes pontos comuns ao trabalho etnográfico: o foco principal deve ser a descrição de uma cultura inteira ou alguma unidade definível de cultura; o trabalho deve ser informado por uma teoria implícita ou explícita de cultura, que fundamenta a organização das imagens, deve conter declarações que revelam a metodologia do autor e empregar um argumento antropológico, sendo esta última é a característica que mais claramente separa a etnografia de outros trabalhos escritos (Id.).
Dentre o corpo de filmes que são rotulados etnográficos, algumas características também se sobressaem, como um estilo visual e audível que é compartilhado com os filmes documentários e uma dependência da narração ou acompanhamento de materiais escritos para a interpretação antropológica do filme (Id.).
Outros autores discordam dessa posição. Segundo Karl G. Heider, é melhor não tentar definir os filmes etnográficos, pois a maioria dos filmes pode ser considerada como etnografia, já que são feitos por pessoas e dizem algo sobre a cultura dos indivíduos que os fizeram. Também para Walter Goldschmidt, o filme etnográfico é qualquer filme que pretende interpretar o comportamento das pessoas de uma cultura a pessoas de outra cultura. (Apud RUBY, 1975, p.106).[5] Para Ruby, essas definições não são distintivas e alargam a noção de etnografia, ocasionando perda de seu significado.
Para Clarice Ehlers Peixoto, importante é pensar que o filme etnográfico tem, na montagem, no ordenamento das imagens, um sentido discursivo e uma demonstração lógica. “O filme etnográfico tem um tipo particular de gramática, uma sintaxe distinta, na qual elabora um sistema de procedimentos, de figuras de retórica relativamente estáveis: as temáticas, os símbolos, as metáforas variam de acordo com a maneira como cada antropólogo-cineasta interpreta a cultura que estuda e registra” (PEIXOTO, 1998, p. 215).
Um dos consensos na história do documentário etnográfico é o representado pelo trabalho do antropólogo Jean Rouch, embora ele mesmo tenha recusado este rótulo de etnográfico. Nascido em Paris, em 1917, começa a se interessar pela antropologia em 1941. Em 1946, compra uma câmera de 16mm e viaja à África financiado pelo jornal France Presse, realizando seu primeiro filme: Au pays des mages noirs (1946/47). Seus filmes tiveram enorme influência no desenvolvimento de um novo cinema e sua obra continua a ser uma referência fundamental para realizadores de todo o mundo.
Em 1961, Rouch realiza, com Edgar Morin, seu filme mais famoso, Crônica de um Verão, um retrato da Paris do pós-guerra, marcado pelo clima existencialista. A técnica de Rouch incluiu a presença em cena da câmera e do próprio realizador, fazendo perguntas e apresentando a reação dos entrevistados, deixando claro o filme como uma construção.
Para os antropólogos, Rouch é um exemplo do que se chamou “antropologia partilhada”, por desenvolver um método interativo de produção, onde os personagens opinavam sobre as imagens gravadas e a melhor forma de montagem do filme. Assim, em vez de se constituírem como “objetos de estudo”, os personagens eram vistos como “sujeitos” de uma determinada realidade. Jean Rouch usa, ainda, o termo “observação compartilhada” para definir a câmara participante como um terceiro personagem na relação de troca de informações (ROUCH, 1979, p. 56). Essa técnica de mostrar as imagens do filme às pessoas filmadas, procurando discernir o que elas próprias vêem nessas imagens, Robert Flaherty já havia usado quando filmou Nanook. “Eu já havia refletido muito sobre o absurdo de escrever livros inteiros sobre pessoas que não teriam acesso a eles aí, de repente, o cinema permite ao etnógrafo partilhar a antropologia com os próprios objetos de sua pesquisa”, diz Rouch (Apud MONTE-MÓR, 2004). Para obter o efeito que pretendia, Jean Rouch se empenhou na construção de um aparelho mais leve e na adaptação de um motor auxiliar para possibilitar a gravação dos sons. Para Rouch, a nova técnica deveria ser aplicada antes que certas manifestações culturais desaparecessem complemente. Suas experiências com o som direto e também com o plano-seqüência serão amplamente exploradas e universalizadas.
Segundo discute MacDougall, é o autor quem decide a pertinência da imagem. Para ele, é sempre o autor quem decide quais “vozes” serão incorporadas ao filme e como apresentar o material filmado, apesar de não poder definir e controlar totalmente o significado que este receberá (MACDOUGALL, 1994, p. 31). Parece-nos que Rouch reconhece exatamente isso: sua responsabilidade pela decisão de filmar, mas também pela manipulação das imagens na montagem; por isso, chamava seus filmes de “ficções etnográficas” ou “ficções que se tornam realidade”.
Deleuze também identifica em Rouch o exemplo de uma nova narrativa que surge nos anos 1960, centrada no discurso indireto-livre, e numa imagem-tempo que marca o documentário contemporâneo. Assim, as imagens do documentário passam a ser temporalizadas e nunca estão no presente. E tanto as personagens quanto o próprio cineasta se tornam um outro: “‘Eu é outro’ é a formação de uma narrativa simulante, de uma simulação da narrativa ou de uma narrativa de simulação que destrona a forma da narrativa veraz” (DELEUZE, 1990, p. 186)
O que explica esse tipo de narrativa, apoiado na “imagem-tempo”, é para Deleuze o fato de existirem dois regimes predominantes das imagens (sem, contudo, descartar a possibilidade de outros regimes, como, por exemplo, o das imagens eletrônicas digitais):

[...] um regime que se poderia chamar de orgânico, que é o da imagem em movimento, que opera por cortes racionais e por encadeamentos, e que projeta ele mesmo um modo de verdade (a verdade é o todo...). E o outro é um regime cristalino, o da imagem-tempo, que procede por cortes irracionais e só tem reencadeamentos, e substitui o modelo da verdade pela potência do falso como devir (DELEUZE, 1992, p. 86).


[1] O termo é usado no sentido definido por Vílem Flusser, em para designar imagens produzidas por aparelhos, como a fotográfica e cinematográfica (FLUSSER, Vílem. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985).
[2] O termo, explica Geertz, foi tomado emprestado de Gilbert Ryle. (GEERTZ, 1989, p.4)
[3] Publicado no ensaio Visual anthropology in a discipline of words. In: Paul Hockings (org.). Principles of visual anthropology. Haye: Mounton Publishers, 1975.
[4] Um extenso manual sobre os procedimentos metodológicos dos filmes etnográficos pode ser encontrado na obra de Claudine de France, Cinema e Antropologia. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 1998.
[5] Goldschmidt, Walter. Ethnographic Film: definition and exegesis. PIEF Newsletter, 1972 e Heider, Karl G. Ethnographic Film. Berkeley: University of California Extension Media Center, 1974.