O cinema documentário: conceituação e princípios norteadores

Segundo Bill Nichols, para compreender a história do documentário, é preciso considerar, antes de tudo, que o que entendemos por documentário hoje é resultado das diversas tentativas dos pesquisadores em determinar uma história, com começo, meio e fim, para esse “gênero”. Nas origens do cinema não se tinha consciência de estar se inventando uma nova tradição; os interesses eram explorar os limites do cinema e descobrir novas possibilidades não experimentadas. E é exatamente essa característica que o autor acredita que deve ser destacada, pois para ele foi o que permitiu ao documentário manter-se ao longo do tempo como um gênero ativo.

O fato de alguns desses trabalhos terem se consolidado no que hoje denominamos documentário acaba por obscurecer o limite indistinto entre ficção e não-ficção, documentação da realidade e experimentação da forma, exibição e relato, narrativa e retórica, que estimularam esses primeiros esforços (NICHOLS, 2005[a], p.116-17).

Tais considerações servem para minimizar, neste trabalho, as discussões sobre a definição do gênero, marcadas, durante muito tempo, pelo debate sobre as diferenças entre o filme documentário e o filme de ficção, muito embora em algumas construções teóricas contemporâneas tal diferenciação fique evidente. Porém, como demonstrado pela história do cinema, as tentativas de delimitar fronteiras rígidas entre esses gêneros mostraram-se por demais inconsistentes, especialmente a partir do neo-realismo italiano.

Paolo Zaglalia comenta que com o neo-realismo, os gêneros de documentário e ficção tornam-se definitivamente entrelaçados: os elementos do real foram fixados em uma história onde os personagens refletem sobre essa realidade (ZAGAGLIA, 1982). Para Nichols, o neo-realismo, “como movimento do cinema de ficção, aceitou o desafio do documentário de organizar sua estética em torno da representação da vida cotidiana, não só no tocante a temas e tipos de personagem, como também na própria organização da imagem, da cena, da história” (NICHOLS, 1991, p.167).

A própria definição do termo documentário também parece carecer de consenso, podendo abarcar desde o chamado “cinema primitivo”, com as experiências cinematográficas dos irmãos Lumière e outros “cineastas” da época, os filmes de natureza e institucionais, os registros de expedições e acontecimentos históricos até as reportagens exibidas pelas tevês, em canais como o Discovery Channel e outros. Entretanto, para a maioria dos pesquisadores da história do documentário, como o próprio Bill Nichols, o gênero exigiu um longo período de maturação, sendo, portanto, o termo mais restritivo e não adequado a esse cinema das origens.

Para Manuela Penafria, as primeiras experiências com a imagem documental, registrando cenas do cotidiano, eventos sociais e atividades urbanas do final do século XIX, contribuíram para mostrar que a base do documentário assenta-se nas imagens recolhidas nos locais onde decorrem os acontecimentos. “Assim, é o registo in loco que encontramos nos inícios do cinema que se constitui como o primeiro princípio identificador do documentário” (PENAFRIA, 1999, p.38).

Neste trabalho, aceitamos a posição de Bill Nichols, que em suas reflexões demonstra: (1) a indefinição do termo documentário e as diferentes formas de abordagem que contribuem para sua compreensão; (2) o fato de o documentário poder ser visto como um “discurso de sobriedade”; (3) a tradição do gênero documentário relacionada à “impressão de autenticidade”. Esses pontos serão examinados a seguir.

Primeiramente, num exercício de definição do termo documentário, Nichols considera este termo sempre relativo ou comparativo, em síntese, um “conceito vago”, na medida em que não implica a adoção de um conjunto único e fixo de técnicas, formas, estilos, características comuns. “A imprecisão da definição resulta, em parte, do fato de que definições mudam com o tempo e, em parte, do fato de que, em nenhum momento, uma definição abarca todos filmes que poderíamos considerar documentários” (NICHOLS, 2005[a], p.48).

Com isso, os limites do “gênero” são constantemente alterados e redefinidos segundo determinada visualidade predominante. Assim, mais importante que dizer o que é ou não o documentário, é examinar modelos, casos exemplares e inovações. Seguindo seu exercício, e no intuito de uma compreensão mais ampla do termo, Nichols delimita quatro ângulos diferentes de abordagem: “o das instituições, os dos profissionais, o dos textos (filmes e vídeos) e o do público” (Ibid., p. 49).

A estrutura institucional, para Nichols, é uma das primeiras formas de considerar o documentário, pois dá ao filme um status de não-ficção. Levando em conta o patrocinador – seja ele o National Film Board canadense, o canal de notícias Fox, o History Channel ou Michael Moore –, fazemos certas suposições acerca do status de documentário de um filme e acerca do seu provável grau de objetividade, confiabilidade e credibilidade. Pressupomos seu status de não-ficção e a referência que faz ao mundo histórico que compartilhamos, e não a um mundo imaginado pelo cineasta (Ibid., p. 50).

Outro ponto de vista para compreender o que os documentários são é vê-los a partir da comunidade de profissionais que o fazem. Os documentaristas, ao aceitarem a tarefa de representar o mundo histórico, compartilham problemas comuns. “Cada profissional molda ou transforma as tradições que herda, e faz isso dialogando com aqueles que compartilham a consciência de sua missão.” Para Nichols, isso “confirma a variabilidade histórica do modelo: nossa compreensão do que é um documentário muda conforme muda a idéia dos documentaristas quanto ao que fazem” (Ibid., p. 53).

A terceira forma de abordagem relaciona-se ao corpo de textos: os filmes. Neste caso, pode-se considerar o documentário como um gênero, pois há convenções consolidadas que os distinguem dos filmes de ficção: voz-off , entrevistas, som direto, cortes, uso de atores sociais e de pessoas em seus papéis cotidianos como personagens principais do filme, etc. (Ibid., p. 54). Também a importância de uma lógica informativa na organização dos filmes e de suas representações do mundo histórico pode ajudar a distinguir o filme documentário e, ao mesmo tempo liberá-lo dessas convenções. Diz Nichols:

A lógica que organiza um documentário sustenta um argumento, uma afirmação ou uma alegação fundamental sobre o mundo histórico, o que dá ao gênero sua particularidade. Esperamos nos envolver com filmes que se envolvem no mundo. Esse envolvimento e essa lógica liberam o documentário de algumas das convenções em que ele se fia para criar um mundo imaginário (Ibid., p. 55).

A última forma abordada por Nichols refere-se diretamente ao público. Considerando que os limites entre filme documentário e filme de ficção são permeáveis, “a sensação de que um filme é um documentário está tanto na mente do espectador quanto no contexto ou na estrutura do filme” (Ibid., p. 64). Os espectadores, ao assistirem a um filme caracterizado como documentário, supõem que os sons e as imagens desse filme têm origem no mundo histórico. Isso está relacionado à própria capacidade indexadora da imagem fotográfica e do registro dos sons, de reproduzir aquilo que foi registrado. “Os instrumentos de gravação (câmeras e gravadores) registram impressões (visões e sons) com grande fidelidade. Isso lhes dá valor documental, pelo menos no sentido de documento como algo motivado pelos eventos que registra.” (Ibid., p.64).

No documentário o espectador conserva sua crença na autenticidade do mundo histórico representado na tela, mas isso não impede seu entendimento do filme como um argumento ou perspectiva sobre o mundo, para Nichols uma das principais características do documentário.

Como público, esperamos ser capazes tanto de crer no vínculo indexador entre o que vemos e o que ocorreu diante da câmera como de avaliar a transformação poética ou retórica desse vínculo em um comentário ou ponto de vista acerca do mundo em que vivemos. Adivinhamos uma oscilação entre o reconhecimento da realidade histórica e o reconhecimento de uma representação sobre ela. Essa expectativa distingue nosso envolvimento com o documentário de nosso envolvimento com outros gêneros de filme (Ibid., p. 68).

Esta última maneira de compreender o documentário nos leva ao segundo ponto de reflexão, ou seja, à aproximação do documentário com os “discursos de sobriedade”. Ao reivindicar uma abordagem e uma capacidade de intervenção no mundo histórico, moldando nossa visão de mundo, o documentário aproxima-se desses discursos de sobriedade, pelos quais falamos diretamente de realidades sociais e históricas, como ciência, economia, medicina, estratégia militar, política externa, política educacional, dentre outras. Para Nichols, esses sistemas têm poder instrumental de alterar o próprio mundo, efetuando relações de ação e conseqüência.

Seu discurso tem um ar de sobriedade desde que raramente é receptivo simular características, eventos, ou mundos inteiros [...]. Os discursos de sobriedade são sóbrios porque eles consideram sua relação com a realidade direta, imediata, transparente. Por isso seu poder se mostra. Por isso as coisas acontecem. Eles são os veículos de dominação e consciência, poder e conhecimento, desejo e possibilidade. O documentário, apesar de seu parentesco, nunca foi aceito como [um discurso] totalmente igual (NICHOLS, 1991, p.3-4).

Uma última questão a ser pontuada é o fato de a tradição documentarista estar profundamente enraizada na capacidade de o documentário transmitir uma impressão de autenticidade. “Quando acreditamos que o que vemos é testemunho do que o mundo é, isso pode embasar nossa orientação ou ação nele” (NICHOLS, 2005[a], p. 20). O advento dos meios digitais torna esse fato mais contundente, visto que a impressão de autenticidade se mantém mesmo quando não se tem mais garantia de que houve realmente uma câmera e uma cena, embora as imagens possam ser extremamente fiéis a pessoas e lugares conhecidos:

Certas tecnologias e estilos nos estimulam a acreditar numa correspondência estreita, senão exata, entre imagem e realidade, mas efeitos de lentes, foco, contraste, profundidade de campo, cor, meios de alta resolução [...] parecem garantir a autenticidade do que vemos. No entanto, tudo isso pode ser usado para dar impressão de autenticidade ao que, na verdade, foi fabricado ou construído (Ibid., 19-20).

Para Bill Nichols, a impressão de autenticidade é o que parece explicar o atual fascínio pelos formatos reality shows, que exploram a sensação de autenticidade documental, e o sucesso de filmes como Truman, o show da vida e A bruxa de Blair: “experimentamos uma forma distinta de fascínio pela oportunidade de testemunhar a vida dos outros quando eles parecem pertencer ao mesmo mundo histórico a que pertencemos” (Ibid., p. 18).