SOBRE O CINEMA DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO

CAPÍTULO 3 - SOBRE O CINEMA DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO

Na literatura sobre o cinema documentário brasileiro vale o que foi abordado no capítulo anterior: as tentativas de delimitar uma história são sempre construções a posteriori, portanto marcadas pelo pensamento que determinou sua produção. Também vale o fato de ser o filme de ficção, e especialmente o longa-metragem, a principal referência dos pesquisadores. No Brasil, só muito recentemente a história do documentário apareceu de forma mais contundente nas construções teóricas sobre o cinema feito no país, como veremos ao final deste capítulo.

Antes de falar especificamente sobre a história do cinema documentário brasileiro, algumas considerações sobre a história do cinema brasileiro devem ser feitas, visando compreender como o documentário insere-se neste contexto. Primeiramente ressaltamos o fato de a história do cinema brasileiro ter sido pensada em termos de determinada periodização e de linhas de produção consolidadas que não abarcaram a totalidade dos filmes produzidos. Como já dito por Jean-Claude Bernardet, não existe um cinema brasileiro, mas existem “cinemas brasileiros” (BERNARDET, 1978), afirmação que supõe o questionamento sobre que tipo de cinema foi alvo privilegiado dos historiadores em cada período.

Seguindo os métodos clássicos da historiografia, alguns pesquisadores brasileiros propuseram categorizações possíveis para o cinema no Brasil, sendo a obra de Paulo Emilio Salles Gomes a de maior repercussão. Ele estabelece, a partir dos anos 1960, um panorama de sua trajetória, identificando nesta os períodos de grande produção e os famosos ciclos regionais de 1896 a 1966 (GOMES, 1980). Paulo Emilio também produz, no início da década de 1970, um ensaio que se tornou clássico – Trajetória no subdesenvolvimento – e que pensa o cinema brasileiro pela ótica da dominação cultural e pela reposição de certos impasses na produção relacionados ao subdesenvolvimento técnico-econômico.

Outro elemento a considerar é que, como disse Bernardet, se a história do cinema no Brasil foi tratada sempre de forma globalizante, mais importante que pontuar a continuidade ou ruptura de ciclos é pensar as relações do cinema brasileiro com o cinema internacional e os seus movimentos em cada época (BERNARDET, 1995). Acrescentaríamos aqui as relações com a conjuntura nacional de cada período, visto que as determinações políticas e sociais nos informam sobre os temas e as linguagens privilegiadas. Veremos, mais adiante, que essa discussão sobre a continuidade marcou a trajetória do cinema brasileiro até muito recentemente, sendo clara especificamente na idéia de “retomada”, formulada para conceituar o cinema dos anos 1990.

Um último ponto a discutir, nessa introdução, é a experiência cinematográfica brasileira vivida entre o final dos anos 1950 e meados de 1960, que consolidou uma prática que se estendeu até a década de 1980. O Brasil viveu “o período estética e intelectualmente mais denso do cinema brasileiro”, como disse Ismail Xavier. As discussões da época resultaram num “movimento plural de estilos e idéias que [...], produziu a convergência entre a ‘política de autores’, os filmes de baixo orçamento e a renovação de linguagem, traços que marcaram o cinema moderno, por oposição ao clássico e mais plenamente industrial” (XAVIER, 2001, p. 14).

Numa trajetória similar à experiência européia e latino-americana, o cinema brasileiro viveu, nessa época, “os debates em torno do nacional-popular e da problemática do realismo [...]” (Ibid., p. 15). Utilizando estratégias do cinema político, as discussões giraram em torno da idéia de um “cinema de autor”, e dos rumos do cinema, apontando caminhos “entre uma linguagem mais convencional e uma estética da colagem e da experimentação, ou entre uma pedagogia organizadora dos temas, própria ao documentário tradicional, e a linha mais indagativa, de pesquisa aberta, do cinema-vérité” (Ibid., p. 15). Xavier assim sintetiza a conjuntura que marcou o cinema brasileiro das décadas de 1960 e 1970:

[...] tivemos o apogeu do Cinema Novo e suas correções de rumo em resposta ao golpe militar de 1964, a produção dos filmes que pensaram a crise dos projetos políticos de esquerda, o desdobramento do debate cultural com a emergência, em 1968, do Tropicalismo e, em seguida, do Cinema Marginal, esta proposta radical do final da década que explodiu no momento mais duro do regime militar e se eclipsou, como movimento de grupo, por asfixia econômica e censura policial logo antes do balanço histórico de Paulo Emilio (Ibid., p. 11).

A síntese de Ismail Xavier refere-se ao intervalo de dez anos entre duas obras: Revisão crítica do cinema brasileiro (1963), de Glauber Rocha, e o já citado Cinema, trajetória no subdesenvolvimento (1973), de Paulo Emilio Salles Gomes. Para Xavier, a “diferença de ênfase” destes textos mostra bem a atmosfera de cada conjuntura. Em Glauber, há a defesa do “cinema de autor”, a idéia de um “cinema revolucionário”, e uma “vontade de ruptura”. Em Paulo Emilio, um “princípio de continuidade englobante”. Assim, de uma postura que defendia a revolução, “passamos a uma visão que alia, ao movimento de recuperação da história, o balanço de quem reconhece o peso das conjunturas; não se trata mais de propor o grande salto e sim de afiançar a continuidade de uma tradição (Ibid., p. 12).

A segunda metade da década de 1980, para Ismail Xavier, é marcada pelo declínio do que ele chamara de “constelação do moderno” no cinema brasileiro. A partir de então tal constelação esgotou seu dinamismo e se dissolveu num contexto em que as forças passam a ser outras: a Nova República “enterra de vez uma matriz para pensar o cinema e o país” (Ibid., p. 37), afirmando a técnica e a “mentalidade profissional”. Tendo a produção paulista como principal pólo, o cinema dos anos 1980 busca reconciliar-se com a tradição do “filme de mercado”:

São realizados filmes cheios de citações, nos moldes da própria produção norte-americana dos anos 1980; é reformulado o diálogo com os gêneros da indústria e são descartadas as resistências aos dados de artifício e simulação implicados na linguagem do cinema, descartando-se de vez o “primado do real”, o perfil sociológico das preocupações (Ibid., p. 38).

Todas essas discussões, além das já abordadas no capítulo anterior, refletem nas informações consideradas sobre o documentário brasileiro, que serão vistas a seguir a partir de seus principais marcos histórico-críticos, na trajetória de afirmação deste gênero no Brasil. As transformações no filme na contemporaneidade são examinadas a partir dos conceitos de hibridismo e reflexividade, e do trânsito ou passagem entre imagens de diferentes suportes, bem como dos questionamentos sobre as mudanças efetuadas com o registro digital da imagem.

Para estabelecer um panorama geral sobre as experiências do cinema documentário brasileiro, buscamos identificar seus principais movimentos, desde as origens até a década de 1950, passando pelo marco do Cinema Novo, por sua estreita ligação com a prática do documentário até o cinema da “retomada” que caracterizou as realizações da década de 1990. São apresentados dados sobre o mercado cinematográfico relacionado ao documentário, especificamente no período de 1995 a 2005, sendo ressaltados, em todo esse percurso, os fundamentos teóricos considerados relevantes no que concerne a dados históricos, caracterização de modelos, estilos e idéias predominantes em cada período.

3.1 Apontamentos histórico-críticos sobre o documentário no Brasil: das primeiras experiências ao cinema dos anos 1980

Como no mundo, o cinema no Brasil nasceu do impulso documental de pioneiros interessados no registro de atualidades e na exploração do novo meio cinematográfico, mesmo que como linguagem o gênero documentário só se afirme mais tarde. De forma geral, “o documentário silencioso brasileiro começa em 1898, ocupa com quase exclusividade as telas até 1907 e estende-se até a transição para o sonoro no final dos anos 20 e começo dos anos 30.” (LABAKI, 2006, p. 18)

Para Amir Labaki,

[...] segundo as convenções historiográficas, nos últimos anos cada vez mais discutidas, em 19 de julho de 1898 aconteceu a primeira filmagem, na entrada da baía de Guanabara, por Afonso Segreto (1875-?). Teria sido um travelling pela orla do Rio a partir do tombadilho de um navio emblematicamente chamado ‘Brésil’. O registro não resistiu ao tempo e sequer foi fixado na crônica da época (Ibid., p. 17).

Labaki refere-se essencialmente às obras de Paulo Emilio Salles Gomes, já citado, e de Vicente de Paula Araújo (ARAÚJO, 1976), historiadores que determinaram o “nascimento” do cinema no Brasil nessa data específica. Para Jean-Claude Bernardet, não se sabe exatamente os critérios ideológicos que levaram a tal determinação, mas pode-se vislumbrar a lógica evolucionista que marcou esses trabalhos. Na mesma linha, Bernardet cita a obra de Alex Viany (VIANY, 1959), que mesmo sem precisar uma data constrói uma evolução baseada na metáfora do “rapazinho” que não teve uma infância risonha e franca, se tornou homem, levou um tombo e enfrentou crises (BERNARDET, 1995).

Bernardet alerta que a necessidade de um marco inaugural para o cinema sugere um desenvolvimento cronológico linear, o que não ocorreu, e que considerar uma filmagem como marco e não uma exibição pública é uma opção que projeta o quadro ideológico vigente quando da elaboração do discurso histórico: “Com tal opção, os historiadores privilegiam a produção, em detrimento da exibição e do contato com o público” (Ibid., p.26).

Em relação às primeiras experiências do cinema documentário no Brasil, seguindo a trilha de Paulo Emílio Salles Gomes, Amir Labaki cita o trabalho de pioneiros em diversos estados brasileiros: os irmãos Botelho, no Rio de Janeiro; Antonio Campos, em São Paulo; Aníbal Requião e João Batista Groff, no Paraná; Eduardo Hirtz, Giuseppe Fellipi e Carlos Comelli, no Rio Grande do Sul; Igino Bonfioli, Aristides Junqueira, em Minas Gerais; Walfredo Rodrigues, na Paraíba; e Adhemar Bezerra, no Ceará (LABAKI, 2006, p. 18-19).

Podemos considerar que somente após essas primeiras experiências, mais focadas na experimentação, na documentação e no registro, surgem os primeiros marcos significativos do documentário brasileiro, expressos no trabalho de dois realizadores e em um filme: Silvino dos Santos, Luiz Thomaz Reis e São Paulo, a Symphonia da Metrópole (1929). Labaki lembra que, na história do documentário, Santos e Reis inscreveram-se entre os primeiros documentaristas mundiais.

3.1.1 Do cinema etnográfico e educativo ao proto-cinema novo: o documentário brasileiro na primeira metade do século XX

A produção documentarista no Brasil afirmou-se, inicialmente, por um viés etnográfico-científico, e pela tematização da Amazônia. Primeiro com o português Silvino Simões dos Santos e Silva ou Silvino Santos (1886-1970), responsável por grande parte do acervo de imagens fotográficas da Amazônia do início do século XX. Santos produziu, a partir de 1914, quase cem filmes, destacando-se Terra Encantada (1923), No Rastro do Eldorado (1925) e No Paiz das Amazonas (1922), seu principal longa-metragem (DE TACCA, 2004). O projeto de tal filme “nasceu da encomenda de J. G. Araújo para um filme de propaganda sobre a pujança econômica do estado do Amazonas, com vistas a exibição na Exposição do Centenário da Independência brasileira, realizada em 1922 na então capital, Rio de Janeiro” (LABAKI, 2006, p.23). O filme alcançou sucesso à época, tendo inclusive cópias distribuídas em outros países.

Seguindo a mesma linha etnográfica-científica de documentar a Amazônia, destaca-se a produção cinematográfica do Major Luiz Thomaz Reis, principal fotógrafo e cinegrafista da Comissão Rondon, nesta responsável pela “Secção de Cinematographia e Photographia”, criada em 1912. No painel apresentado por Fernando de Tacca sobre a produção cinematográfica da Comissão Rondon, que realizou vasta documentação visual sobre os povos indígenas e os modos de vida da Amazônia, na primeira década do século XX, Thomaz Reis é considerado peça fundamental.

A documentação imagética foi considerada por Rondon como um dos pólos das atuações científicas da Comissão; por isso, seus relatórios ao governo brasileiro incluíam, como “estratégia de marketing”, material fotográfico e cinematográfico (DE TACCA, 2004).

Se a persuasão atingia as autoridades através das fotografias, as apresentações dos filmes e os artigos publicados nos principais jornais do país visavam principalmente outro grupo formador de opinião, a elite urbana sedenta de imagens e informações sobre o sertão brasileiro, e Rondon alimentava o espírito nacionalista construindo etnografias de um ponto de vista estratégico (Ibid., p. 316)

Pelo cruzamento de informações sobre a filmografia da Comissão, Fernando de Tacca aponta, no período de 1915 a 1938, diversos filmes realizados por Thomaz Reis, embora poucos tenham sido preservados: Expedição Roosevelt ao Mato-Grosso (1915); Rituaes e festas Bororo (1917); De Santa Cruz (1917); Indústria da borracha em Minas Gerais e no Amazonas (1917); Inspecção no Nordeste (1922); Ronuro, selvas do Xingu (1924); Operações de guerra (1926); Viagem ao Roraima (1927); Inspecção de fronteiras – Mato Grosso e Paraná (1931) e Inspectorias de fronteiras (1938). (Ibid., p. 318)

Rondon e Reis formam um único e inseparável olhar articulado que fornece visibilidade das diferenças étnicas e de contato no Brasil daquela época, responsável por permanências sígnicas no imaginário brasileiro no roteiro entre a imagem do selvagem ao integrado. (Ibid., p. 370)

Para diversos pesquisadores, Thomaz Reis é um pioneiros internacionais do cinema etnográfico, especialmente pelo filme Rituaes e festas Bororo. “Seu estilo progrediu com o tempo do mero registro a estudadas composições de seqüências. Contudo, seu olhar não poderia deixar de trazer marcas de seu tempo – o positivismo científico, um etnocentrismo algo rousseauniano, certo patriotismo exacerbado” (LABAKI, 2006, p. 29).

Patrícia Monte-Mór destaca a continuidade das experiências da Comissão Rondon no Serviço de Proteção aos Índios, em que atuaram nas décadas seguintes vários fotógrafos e cinegrafistas, além de antropólogos como Darcy Ribeiro. Monte-Mór também pontua outras iniciativas pioneiras relacionadas ao cinema etnográfico, como o filme Rondônia (1912), de Roquette-Pinto, parte do acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro; além dos filmes de Claude e Dina Lévi-Strauss, nos anos 1930 (MONTE-MÓR, 2004).
Na história do documentário brasileiro, após o trabalho etnográfico de Silvino Santos e Thomaz Reis, um filme se destaca: São Paulo, a symphonia da metrópole (1929), de Adalberto Kemeny e Rudolph Lex Lustig, considerado “o mais importante documentário urbano da era silenciosa no Brasil” (LABAKI, 2006, p. 29). O filme enquadra-se nas “sinfonias da metrópole”, filmes que no mesmo período retrataram um dia na vida de uma grande cidade, como Rien que les heures (1926), de Alberto Cavalcanti, Berlim, sinfonia da metrópole (1927), de Walter Ruttmann, e O homem da câmara (1929), de Dziga Vertov. O filme “representa, no campo das idéias, uma espécie de manifesto audiovisual ufanista-futurista, em sintonia com certas tendências do movimento modernista desencadeado, na própria São Paulo, pela Semana de Arte Moderna de 1922”. (Ibid., p. 34)

Após esses marcos iniciais, podemos considerar que um novo momento na história do documentário brasileiro surge articulado com a produção de Humberto Mauro (1897-1983), iniciada do final dos anos 1920 e estendendo-se até a década de 1950, além de todas as produções focadas num certo tipo de cinema educativo que foi valorizado no Brasil nesse período.

Humberto Mauro iniciou sua carreira em Cataguases (MG) em 1926, e partilhou “com o grupo de Cinearte, a revista de cinema carioca dirigida por Adhemar Gonzaga, o repúdio ao filme ‘natural’” (Ibid., p.261), a oposição aos trabalhos focados em paisagens inusitadas, selvagens e inexploradas. Para Scheila Schvarzman, a trajetória e o envolvimento paulatino de Mauro com o cinema documentário “explicam a própria evolução e as tensões da aceitação do filme documental no Brasil desde meados dos anos 1920 e a opção oficial pelos filmes educativos nos anos 30 até a plenitude do documentário a partir dos anos 1950” (SCHVARZMAN, 2004, p. 261).

Schvarzman lembra a tônica moralista dos discursos sobre o cinema que predominaram no Brasil até o início da década de 1930 – quando se instalou oficialmente a censura –, que se dividem em duas posturas a partir de então: uma preocupada com a qualidade e conteúdo dos filmes em relação ao seu público e outra com a produção de obras que refletissem de forma “adequada” a realidade nacional. Em ambos os casos, o cinema é percebido como instrumento de muitas possibilidades, mas que é preciso saber “dominar corretamente”.


Para tanto, impõe-se, por um lado, a existência de algum tipo de controle que impeça a divulgação indiscriminada de mensagens [...], e, por outro lado, medidas que incentivem a produção e exibição de um “bom” cinema nacional, como pleiteavam, por exemplo, Adhemar Gonzaga ou intelectuais e educadores como Roquette-Pinto e Jonathas Serrano, favoráveis à produção nacional de filmes educativos como parte de uma estratégia de transformação cultural e modernização de forma massiva que atingisse eficazmente os iletrados (Ibid., p. 265).


De 1928 e 1933, as obras ficcionais de Mauro (em Cataguases e na Cinédia, estúdio de Gonzaga no Rio de Janeiro) já manifestam sua aproximação com o documentário, observada em filmes como Braza dormida (1928), Sangue mineiro (1929), Lábios sem beijos (1930) e Ganga bruta (1933). Para Schvarzman, Humberto Mauro mostra “um olhar documental que se detém deliberadamente na descrição das paisagens, das habitações, dos gestos humanos, do funcionamento de maquinários e formas de trabalho [...]. Em Mauro, desde os primeiros filmes, a câmera funciona como instrumento de desvendamento do real” (Ibid., p. 263).

Em 1932, o decreto-lei 21.240 obrigou que curtas-metragens educativos realizados no Brasil fossem exibidos antes de cada sessão de filme de longa-metragem estrangeiro. Tal decreto significou “um desejo deliberado de controlar e ordenar a produção fílmica nacional, ao mesmo tempo em que são oferecidos incentivos à produção em geral” (Ibid., p. 268). Segundo Schvarzman, isso marcou uma inflexão na história do documentário e da própria atividade cinematográfica, pois instituiu uma censura nacional que valorizou as produções feitas nos moldes considerados adequados pelo Estado.

Em 1936, surge, vinculado ao Ministério da Educação e Saúde, o Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), cuja atuação destacou-se pela produção de curtas e médias metragens de caráter didático-científico. Para Fernão Ramos, o documentário brasileiro, desde o cinema falado até o surgimento da geração cinemanovista, articula-se principalmente em torno dos trabalhos de Humberto Mauro e do INCE. Sob essa perspectiva,

[...] [o] projeto do INCE embute uma visão do cinema documentário marcada pelo viés educativo, dentro de uma ideologia interventora e centralizadora das atividades do Estado (estamos às vésperas da ditadura do Estado Novo). O conceito de educação, ou cinema educativo, é o verniz que cobre a visão do que é o gênero documentário, justificando e permitindo o apoio do Estado à atividade cinematográfica, com base em um viés preservacionista e culturalista (RAMOS, 2000, p.194-96).

Considerando o projeto do INCE, não podemos deixar de estabelecer relações com o movimento que se afirmou na história do documentário mundial a partir da década de 1930, com John Grierson e o predomínio de uma visão educativa e social do cinema, mesmo que adaptado à realidade brasileira. Amir Labaki define essa idéia, ao dizer que o projeto do INCE “combinava o documentarismo instrumental de John Grierson ao preservacionismo cultural de Mário de Andrade” (LABAKI, 2006, p. 40), sendo que na primeira fase da atuação de Humberto Mauro (1936-1947) predominou o primeiro fator, e na segunda fase (1947-1964), o segundo.

Dessa primeira fase, em que se manifesta a influência de Roquette-Pinto na definição das temáticas, predominam os assuntos de caráter científico, os “vultos” de personalidades, escritores, pensadores e músicos, e os temas de cultura popular e folclore tratados por um viés erudito (SCHVARZMAN, 2004). Em seus dez anos iniciais, o INCE se dedicou “a construir a imagem de um país portentoso, dotado de uma natureza pródiga, uma ciência capaz de decifrá-la contendo e reparando as dificuldades, e grandes homens aptos a conduzir a nação ao grande destino inscrito nas promessas da natureza”. (Ibid., p. 287).

Com o fim do Estado Novo e a saída de Roquette-Pinto, o Ince, tal como fora concebido, torna-se um anacronismo. [...] A utopia transformadora que se assentava sobre o cinema e a educação desaparece. Nó pós-guerra, o enfoque econômico toma o lugar estratégico da educação, e o desenvolvimento, a forma de conceber a construção nacional. Assim, não há mais um projeto político de utilização oficial do cinema (Ibid., p. 288).

Nesse segundo momento, a produção de Humberto Mauro é marcada por uma visão rural, mineira e musical do Brasil, como em Carro de bois e Engenhos e usinas (ambos de 1955) e nas Brasilianas, produzidas desde 1945, “com músicas do cancioneiro popular reunidas por Villa-Lobos” (Ibid., p. 273). Ao que parece,

[...] [todos] esses filmes apontam para a volta de um tempo perdido, como se a infância ou a natureza fossem realmente dóceis, desprovidas de conflitos e dores. Além disso, o território da felicidade é figurado unicamente no campo, como se na cidade o homem tivesse se partido, perdido o contato com a sua essência. O Brasil essencial é figurado no campo, na terra, lugar das origens. Deixou de ser extraordinário. Mauro registra um país ordinário (Ibid., p. 291).

Em relação a Humberto Mauro ressaltamos, por fim, sua última produção no INCE, de 1964, A velha a fiar, uma reflexão sobre o próprio fazer cinematográfico que fecha um período na história do cinema brasileiro. No filme, os elementos da canção popular são introduzidos em formas fixas paralelamente às imagens da velha em sua roca, sendo os cortes pontuados por uma estrutura musical repetitiva e de ritmo crescente. Para Schvarzman, a imagem “desfia-se como na roca da velha, pela evidência da montagem” (Ibid., p. 296). “Com isso, A velha a fiar é, a um só tempo, reflexão sobre a vida que passa, o envelhecimento do próprio diretor e uma revelação de seus instrumentos. A suposta ingenuidade dissolve-se na reflexão sobre seu ofício e sua matéria” (Ibid., p. 296).

Por terem em comum a idéia de preservação da cultura popular, Labaki relaciona os últimos documentários de Humberto Mauro aos marcos seguintes do documentário brasileiro, representados pelos filmes Arraial do Cabo (1959), de Paulo Cézar Saraceni em parceria com o fotógrafo Mário Carneiro, e Aruanda (1960), de Linduarte Noronha. Para Fernão Ramos estes dois filmes foram os precursores do Cinema Novo no Brasil, que teve como marca a produção de documentários (RAMOS, 1990, p. 362).

Arraial do Cabo relaciona tradição e modernidade numa colônia de pescadores próxima a Cabo Frio (RJ). Labaki comenta que o tema é o mesmo de Engenhos e usinas, de Humberto Mauro. Ambos os filmes “partilham a mesma nostalgia pré-moderna, o mesmo desconforto diante da chegada da máquina e o mesmo cuidadoso tratamento técnico de som e imagem, ainda não sincrônicos. [...] A ideologia cinemanovista de ode ao “povo” pedia passagem, aqui ainda sob um tratamento classicista” (LABAKI, 2006, p. 41).
Linduarte Noronha filma Aruanda em 1960, na Paraíba, curta-metragem que partiu de uma reportagem jornalística e fez um estudo sobre a evolução de um quilombo. O filme alcançou projeção nacional ao expor a miséria do campesinato brasileiro. Para Bernardet, este filme conseguiu formar um “certo espírito”, atingindo os espectadores por seu tema, sua produção e suas formas. Realizado em um Estado extremamente pobre, ele confirma que “a produção de um cinema socialmente significativo não depende da riqueza dos meios”.

A precariedade dos meios é tomada como a expressão de um cinema que se afasta do modelo hollywoodiano tanto quanto do “padrão de qualidade” da Vera Cruz, e que se assume sem vergonha como aquilo que é. Esta “pobreza” da forma deixa de ser a conseqüência do subdesenvolvimento para se tornar sua expressão, e é também a expressão da pobreza mostrada na tela (BERNARDET, 1985, p. 192).

Amir Labaki lembra que Aruanda fez escola. “Toda uma geração de documentaristas paraibanos se desenvolveu a partir dele: Vladimir Carvalho, Ipojuca Pontes, João Ramiro Melo” (LABAKI, 2006, p.45). Labaki analisa, ainda, que a influência de Aruanda transcendeu a esfera do documentário, “marcando os clássicos centrais do nascente Cinema Novo, Vidas Secas, Deus e o diabo na terra do sol e Os fuzis” (Ibid., p. 47).

Para Ismail Xavier, o cinema moderno brasileiro se desenvolveu especialmente com Nelson Pereira dos Santos, sendo o filme Rio 40 graus (1954) considerado uma das principais referências nessa transição. Segundo Xavier, o filme é um “proto-Cinema Novo”, dialogando, sobretudo, “com o neo-realismo e a comédia popular brasileira” (XAVIER, 2001, p. 16). Esse tratamento realista é seguido também em Rio, Zona Norte (1957), também de Nelson Pereira, Cinco vezes favela (1962), filme de cinco episódios, dirigidos por Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Marcos Farias e Miguel Borges. Porém essa idéia de um cinema “realista” que surge neste período e se concentra na abordagem do espaço urbano, especialmente da favela, será discutida no próximo capítulo, item 4.1, tratando-se essencialmente da tematização da violência urbana no cinema.

3.1.2 Superação de modelos e renovação de linguagem: a transformação do documentário brasileiro do Cinema Novo aos anos 1980

Os anos 1960 e 1970 no cinema brasileiro destacaram-se na produção de filmes documentários, em sintonia com a revolução proposta pelo desenvolvimento tecnológico que resultou nas câmeras portáteis de som sincrônico e pelos movimentos do Cinema Verdade e no Cinema Direto, mencionados no capítulo anterior. O documentário brasileiro vive, ao final da década de 1950, o início do seu Cinema Novo, período marcado pela proposta de uma nova estética, por intensa renovação de linguagem que incluiu novas estratégias narrativas e novos temas. De uma forma geral, o movimento focou sua atenção no registro “das tradições populares, da arquitetura, das artes plásticas, da música, etc.”, mas também na problemática social e na preocupação com a linguagem (BERNARDET, 1985).
Para Francisco Elinaldo Teixeira, as transformações das formas do documentário brasileiro a partir do Cinema Novo podem ser compreendidas pela análise de três textos, considerados referências centrais do gênero no Brasil: o livro Cineastas e imagens do povo (1985), de Jean-Claude Bernardet, e os ensaios Anti-documentário, provisoriamente (1972), de Arthur Omar, e Auto-reflexividade no documentário, (1997), de Sílvio Da-Rin. Esses trabalhos, para Teixeira, formam um conjunto de proposições em que se identificam três modelos e formas de superação:
1 – Um modelo ficcional, calcado na “função-espetáculo”, que apresenta a realidade documental como uma ficção, com sua contrapartida em peças experimentais implicadas com uma desarticulação da linguagem documental dominante (Omar); 2 – Um modelo sociológico, tributário da crença clássica na possibilidade de atingir um real bruto, com sua superação em documentários concebidos como “discursos” construídos no real (Bernardet); 3 – Um modelo ilusionista, herdado da “forte presença do griersonismo” desde a nascença do documentário, cuja problematização se dá com o surgimento de tendências reflexivas que põem em foco os processos de representação documental (Da-Rin) (TEIXEIRA, 2004, p.30).

Para Arthur Omar, o documentário, por carecer de história, linguagem e estética próprias, constituiu-se como um “espelho da ficção”, um “subproduto da ficção narrativa” (Ibid., p. 31-34): “o cinema de ficção, com seus dispositivos narrativos, visa ‘tornar mais real o que ele queria apresentar como realidade, e o documentário, cujo desenvolvimento foi mera absorção desses dispositivos, acaba apresentando a sua realidade documental como se fosse ficção’” (Ibid., p. 31).

Assim, Omar parte de uma visão negativa, desconstrutivista do documentário para discutir a construção de uma nova prática documental, orientada pela experimentação, que constituiria uma espécie de “contrapartida dessa determinação ficcional”: o antidocumentário. Esta idéia de experimentação reflete um contexto específico da cinematografia brasileira, a década de 1970, e, conforme abordamos no capítulo anterior, é justamente a característica apontada por Bill Nichols que permitiu ao documentário manter-se como um gênero ativo.

Para Omar, o antidocumentário parte da linguagem do documentário e a inverte, reorganizando os elementos do filme em novas combinações. Ele cita o exemplo do filme Congo, onde a palavra escrita, que é um elemento totalmente dominado no documentário, corresponde a 90% do filme:

Não estou propondo uma nova visão da congada, o Congo, objetivamente, não é o tema do filme, o tema é a tensão entre o conhecimento erudito e uma prática popular que está colocada em outro nível de realidade e que em última instância não se comunica. Eu quero questionar a estrutura do documentário como sendo produtor da satisfação do conhecimento, porque na verdade você só vai ter a sensação de conhecer, quando aquele objeto estiver longe de ser apreendido. Eu não trato desse objeto. Trato da maneira como esse objeto é tratado por um determinado discurso. Isso é o antidocumentário – é quase um filme epistemológico. [...] ... a idéia do antidocumentário é uma reflexão sobre a ilusão de conhecimento, ele tem um sentido mais negativo ... ele alude ao seu objeto, ele domina o objeto (Apud RAMOS, 1993).

Jean-Claude Bernardet observa que Congo se enquadra tematicamente em várias produções do período focadas em aspectos culturais tradicionais das zonas rurais brasileiras, “quer sob o pretexto de promover a cultura popular, de registrar a memória da nação, ou de documentar tradições que o avanço do capitalismo fazia desaparecer” (BERNARDET, 1985, p. 94), mas difere totalmente da idéia dominante de acreditar plenamente na possibilidade de o cinema conservar tais manifestações. Bernardet analisa que esse filme “sonega radicalmente o seu referente, ou aparente referente” (Ibid., p. 94), fazendo sobressair um discurso que manifesta a voz do documentarista.

Neste filme sobre a congada, não haverá nenhuma imagem, fixa ou em movimento, de congada. O processo analógico recua a ponto de 114 dos 148 planos do filme serem constituídos por letreiros. E dos 34 planos que não são letreiros, apenas 24 são filmados ao vivo, sendo os outros fotografias fixas, páginas de livro ou fotogramas pretos ou brancos (Ibid., p. 94).

Para este autor, o filme de Omar já mostra o rompimento com um modelo sociológico predominante nos anos 1960 e que será analisado a seguir.
Jean-Claude Bernardet identifica, no contexto sócio-cultural do início dos anos 1960, “marcado pelas diversas tendências ideológicas e estéticas que queriam que as artes não só expressassem a realidade social, mas ainda contribuíssem à transformação da sociedade” (BERNARDET, 1985, p.7), a predominância de um “modelo sociológico” que perpassa a construção dos filmes. Assim, um “espírito sociológico” pode ser visto em filmes como Viramundo (1965), de Geraldo Sarno; Maioria absoluta (1964-66), de Leon Hirzman; Subterrâneos do futebol (1965), de Maurice Capovilla; Passe Livre (1974), de Oswaldo Caldeira e Opinião pública (1966), de Arnaldo Jabour. Tais filmes concentram-se na realidade da produção e das condições proletárias de trabalho, sendo que o “instrumento para compreender a realidade é a sociologia e, conseqüentemente, a exterioridade do sociólogo em relação ao objeto de sua ciência” (Ibid., p.8).

Sobre Viramundo, Bernardet analisa as vozes diversificadas do filme que “não falam da mesma coisa e não falam do mesmo modo” (Ibid., p. 11) e destaca a voz do locutor, sempre over, identificada como “a voz do saber, de um saber generalizante que não encontra sua origem na experiência, mas no estudo de tipo sociológico” (Ibid., p. 13). Os entrevistados, operários migrantes em São Paulo, relacionam sua condição à questão da terra, funcionando como uma amostra que é exemplificada pela voz do locutor, atestando a veracidade de seu discurso. São “matéria-prima” para a construção dos tipos pretendidos para o realizador, construção que, neste filme como em outros do período, caracteriza o modelo sociológico.
Cada operário entrevistado funciona, assim, como uma espécie de “singular generalizante”. O funcionamento básico de produção de significação do filme se dá, então, pela construção de tipos, e pela construção de uma “relação particular/geral” que funciona em complementaridade. “O filme funciona porque é capaz de fornecer uma informação que não diz respeito àqueles indivíduos que vemos na tela [...], mas a uma classe de indivíduos e a um fenômeno.” (Ibid., p.14). Além disso, o discurso elaborado em Viramundo sobre os migrantes e sua condição é afirmativo, e evita qualquer problematização. Mas Bernardet ressalta que a linguagem unívoca desse filme corresponde ao que, na época, era possível ao gênero documentário.
Amir Labaki, falando tecnicamente sobre o mesmo filme, lembra um dispositivo fundamental que distinguiu Viramundo dos anteriores: a entrevista. Para o autor, o filme foi “um dos primeiros exemplos acabados de documentários brasileiros influenciados pelas novas possibilidades técnicas e estéticas do Cinema Direto [...]. Equipamentos mais leves, filmes mais sensíveis, gravação de som sincrônico à imagem” (LABAKI, 2006, p. 48-9).

Em Maioria absoluta, de Leon Hirszman, Labaki reconhece o primeiro exemplo acabado de Cinema Verdade no Brasil. Para Bernardet este filme inova ao usar uma locução mais próxima (o “nós” e o “tu”) e não isolada no mundo da ciência. Em Opinião pública, de Arnaldo Jabour, identifica ecos das experiências de Jean Rouch e Edgar Morin, “com sua rede de entrevistas caoticamente tecida e alongada” (Ibid., p. 53).

Para Bernardet, Opinião Pública, mesmo usando o mesmo sistema particular/geral e de construção de tipos presente desde Viramundo, é inovador na explicitação de sua metodologia e na presença da classe média. Ao focar numa realidade próxima, “o cineasta exorciza a classe média” (Ibid., p. 58) e faz “oscilar o filme entre a postura científica que institui o outro, e a identificação”. Esse “olhar no espelho perturba o método” (Ibid., p. 51). Ismail Xavier lembra, ainda, que ao expor a classe média, Opinião Pública também deixa escapar outros dados “sobre a vida urbana, sobre os delírios de todo dia, sobre o grotesco da cultura de massa, que solicitam outros enfoques na lida do cinema com a experiência brasileira” (XAVIER, 2001, p. 63).

Jean-Claude Bernardet explica como se deu a superação desse modelo sociológico (mesmo que tenham permanecido vestígios da atitude sociológica), num movimento “em direção a uma realidade que não mais se define pela produção material, mas se caracteriza pelo imaginário e a produção simbólica” (Ibid., p. 187). Sob a influência

[...] da evolução política posterior ao golpe militar de 1964, dos movimentos sociais que foram abafados ou conseguiram se expressar, do questionamento relativo ao papel dos intelectuais, das diversas revisões por que passaram as esquerdas, do aparecimento das “minorias”, que colocaram a questão do outro, da evolução do Cinema Novo e da perda de sua hegemonia ideológica e estética, das preocupações quanto à linguagem cinematográfica, ao realismo e à metalinguagem, este cinema documentário viveu uma crise intensa, profundamente criadora e vital. O “modelo sociológico”, cujo apogeu situa-se por volta de 1964-1965, foi questionado e destronado, e várias tendências ideológicas e estéticas despontaram (BERNARDET, 1985, p.8).

Segundo Bernardet, os exemplos desse rompimento se manifestam inicialmente em João Batista de Andrade, em Liberdade de imprensa (1967) e Migrantes (1972). No primeiro filme destaca uma nova postura assumida pelo diretor, que transmite informações aos entrevistados e filma suas reações. Assim, o filme “provoca uma alteração do real” que é filmada e que quebra um tabu: o de “que o documentário deva e possa apreender o real tal como é, independente da situação da filmagem” (Ibid., p. 64). Em Migrantes, João Batista de Andrade aprofunda essa estratégia de intervenção e subverte o esquema de construção de tipos: ao calar as perguntas o entrevistador dialoga, fazendo “aparecer o indivíduo que estava soterrado debaixo dos tipos, das amostras, das exemplificações” (Ibid., p.72).

Outros filmes citados por Bernardet exemplificam a ruptura com o modelo sociológico: Lavrador (1968), de Paulo Rufino, Indústria (1968), de Ana Carolina Soares e Congo (1972), de Arthur Omar, onde se exibe o discurso cinematográfico e “a voz do documentarista”; Tarumã (1975) e Jardim Nova Bahia (1971), de Aluysio Raulino, onde predominam “a voz do outro”; Os queixadas (1978), de Rogério Corrêa, Greve (1979), de João Batista de Andrade e Porto de Santos (1980), de Aluysio Raulino, onde se destacam as ações políticas, o “outro em greve”; além da outra vertente de O velho e o novo - Oto Maria Carpeaux (1966), de Maurício Gomes Leite e Cultura e Loucura (1973), de Antônio Manuel; e de Gilda (1976), de Augusto Sevá, Destruição cerebral (1976), de Carlos Fernando Borges, José Carlos Avellar e outros, e Iaô (1974), de Geraldo Sarno, onde o outro já não é espetáculo nem objeto de estudo.

Ao colocarem com intensidade a busca pela voz do outro, tais filmes também intensificaram a voz do documentarista, especialmente porque foram produzidos em meio à crise vivida após o golpe militar. O fracasso político da “transformação revolucionária e popular da sociedade” soma-se a um fracasso ideológico que se manifesta nos filmes. A linguagem se torna fragmentada, ambígua, reflexiva, características que no final dos anos 1970 passam a fazer parte dos filmes.

A voz do outro desponta tanto pela força dessa voz que obriga o documentarista a deixar seu tom absoluto, quanto pela crise pela qual ele passa; a valorização do discurso do documentarista é tanto reflexão sobre si e até narcisismo, quanto expressão de um relativismo que propicia o aparecimento das relações de classe que atuam nos filmes (Ibid., p. 191).

Antes do comentário sobre a passagem do modelo ilusionista – último modelo analisado por Elinaldo Teixeira –, ao modelo reflexivo, serão traçados outros percursos propostos por Amir Labaki e Ismail Xavier. Na historiografia que Labaki construiu, três datas são consideradas essenciais para a compreensão do documentário produzido pelos jovens cinemanovistas brasileiros que passa por sua articulação com o grupo paulista liderado pelo fotógrafo e produtor Thomas Farkas e pelas visões do Cinema Direto e Cinema Verdade. A primeira data refere-se à Bienal de São Paulo, de 1962, coordenada por Jean-Claude Bernardet, que incluiu uma homenagem ao cinema brasileiro e exibiu Aruanda, Arraial do Cabo, além de documentários de Joaquim Pedro de Andrade e Luis Paulino dos Santos, entre outros.

A segunda data refere-se ao período de novembro de 1962 a fevereiro de 1963; com a organização de um seminário de introdução ao documentário ministrado pelo sueco Arne Sucksdorff, no Rio de Janeiro, reunindo nomes como Arnaldo Jabour, Domingos de Oliveira, Eduardo Escorel. A novidade trazida por Sucksdorff foi um gravador Nagra. “Um único curta foi realizado, Marimbas, dirigido em março por Vladimir Herzog, documentário de entrevistas com pescadores do posto 6 de Copacabana, naquele que é o primeiro filme a utilizar tomadas com som captado por Nagra” (LABAKI, 2006, p. 50).

A terceira data aludida por Labaki é o ano de 1963, que estabeleceu uma parceria entre cineastas brasileiros e argentinos. Vladimir Herzog e Maurice Capovilla vão à Argentina, e em 1964 Fernando Biriri e outros realizadores da Escola Documental de Santa Fé chegam a São Paulo, iniciando contatos com Thomas Farkas para um projeto abortado logo pelo golpe de 1964 (LABAKI, 2006). Portanto,

[...] [é] este o caldo de cultura que estimula o desenvolvimento da escola brasileira de Cinema Direto, que assume a denominação de Cinema Verdade entre os realizadores do Cinema Novo no Rio de Janeiro e os cineastas articulados por Farkas em São Paulo. “Uma câmera na mão, uma idéia na cabeça”, bradava Glauber. “O Cinema Novo não é uma questão de idade; é uma questão de verdade”, defendeu Sarraceni (Ibid., p. 51).

Amir Labaki alerta, no entanto, para a confusão entre Cinema Novo e Cinema Verdade e propõe uma revisão: “A primeira classificação caberia à produção ficcional destes cineastas. Mas a intensa atividade deles todos em documentários vincula-se sobretudo à segunda escola [...]. Esta trajetória híbrida é uma das marcas e forças dessa geração” (Ibid., p. 51).
Devemos destacar, ainda, o envolvimento de Glauber Rocha com o documentarismo, seja na produção de documentários ou em seu “desejo de história”. Principal articulador e realizador do Cinema Novo, Glauber iniciou sua trajetória na passagem dos anos 1950 para 1960, tendo realizado os documentários Amazonas (1965), Maranhão 66 (1966), História do Brasil (1974) e Di-Glauber (1977).

A partir da ótica do Terceiro Mundo, e considerando as idéias de dominação e resistência, o cinema de Glauber manifesta um

movimento expansivo, articulando os temas da religião e da política, da luta de classes e do anticolonialismo [...]. Cada filme reitera o seu foco nas questões coletivas, sempre pensadas em grandes escalas, através de um teatro da ação e da consciência dos homens onde as personagens se colocam como condensações das experiências de grupos, classes, nações (XAVIER, 2001, p. 117-18).

Para Ismail Xavier, a passagem dos anos 1950 aos 1960 manifestou o questionamento do “mito da técnica e da burocracia da produção” dos projetos típicos da Vera Cruz ou da comédia popular – e o desejo de atualidade, traduzido no ideário da “estética da fome”, onde escassez de recursos se transforma em força expressiva. “Os filmes documentários [...] definiram um inventário das questões sociais e promoveram uma verdadeira ‘descoberta do Brasil’, expressão que não é um exagero se lembrada a escassez de imagens de certas regiões do país na época” (Ibid., p. 27).

Já na passagem dos anos 1970 para os anos 1980, Xavier observa que o documentário, bastante próximo ao movimento sindical, faz emergir um “cinema militante”, com Renato Tapajós, João Batista de Andrade e Leon Hirszman. Xavier destaca ainda os cineastas Sérgio Toledo e Roberto Gervitz, com o documentário Braços cruzados, máquinas paradas (1979), além de um outro documentário que retoma o diagnóstico totalizante e fecha um ciclo de vinte anos de história: Cabra marcado pra morrer (1984), de Eduardo Coutinho. Para o pesquisador, este filme sintetiza os vinte anos de experiência do cinema e da história brasileira, fazendo um amplo recorte político, social, antropológico e fílmico dos trajetos do país e do próprio cinema. Iniciado em 1964 e lançado em 1984, Cabra marcado para morrer mostra o caminho de volta ao mundo histórico, caminho de recomposição da identidade no encontro e re-encontro com Elizabeth Teixeira, viúva de um líder camponês assassinado. Diz Xavier:

Entre Cabra 64 e Cabra 84, as questões permanecem – repressão, posse da terra, reforma agrária, sindicalização rural, migração –, mas não nos mesmos termos, assim como a filmagem se reinstaura, mas não nos mesmos termos. O primeiro encontro cineasta-viúva se desdobra no filme de ficção cujos fragmentos indicam um estilo de cinema didático, mescla de neo-realismo [...] e idealização da imagem do oprimido no estilo CPC. O segundo encontro é já resgate de uma experiência comum e, dada a nova conjuntura do cinema na era da TV e a experiência acumulada pelo documentário brasileiro, a linguagem é outra e o filme se organiza não apenas como discurso sobre estados de consciência e evolução de destinos (XAVIER, 2001, p. 112).

Para Consuelo Lins, Cabra marcado para morrer ecoa os sinais da renovação cinematográfica da década de 1960, especialmente de Jean Rouch e Edgar Morin em Crônica de um verão, filme que para esta autora parece “uma inspiração possível” à metodologia de Coutinho, do filme dentro do filme. Cabra marcado “não deixa, a seu modo, de subverter as fronteiras entre vida e arte, entre ator e personagem, entre cineasta e situação filmada, entre o filme e o espectador; não deixa de ser um documentário sobre uma ficção, um filme dentro de um filme” (LINS, 2004, 41). Sobre o papel de Eduardo Coutinho na trajetória do documentário brasileiro falaremos mais adiante, visto ser este o principal documentarista brasileiro em atividade.
Por fim, tendo mostrado o percurso de superação de um modelo ficcional, especialmente no cinema de Arthur Omar, e de um modelo sociológico, nas experiências do Cinema Novo que tomaram o filme como um discurso construído, o último modelo a ser superado, como aponta Francisco Elinaldo Teixeira a partir das reflexões de Silvio Da-Rin, é o modelo ilusionista, focado no espetáculo. Tal modelo é problematizado pelas tendências reflexivas que surgiram no cinema no final da década de 1960, e também caracteriza o documentário contemporâneo (lembrando ainda que essa tensão ilusão-reflexão pode ser identificada em vários períodos da história da arte). Questionando o ilusionismo cinematográfico, os modos de representação baseados nas regras de continuidade e montagem transparente, se propôs, num “contexto politizado e radicalizado” na França, em 1968, um discurso “que exibe suas marcas e deixa transparecer as funções sociais e materiais em que se baseia” (DA-RIN, 2004, p. 169).

No campo do documentário, esse discurso é identificado por Bill Nichols, conforme mencionamos no capítulo anterior, como uma tendência “auto-reflexiva” de representação e que questiona o filme como janela aberta para a “realidade”. Isso exigiu uma nova postura do documentarista, mais crítica tanto em relação à forma de tratar os temas como no que diz respeito às relações com o documentado e com o espectador. Para Da-Rin, a auto-reflexividade de certos filmes documentários recentes mostra que “o espelho que um dia pretendeu refletir o ‘mundo real’ agora gira sobre seu próprio eixo para refletir os mecanismos usados na representação do mundo” (DA-RIN, 2004, p. 186).

Para Fernão Ramos, o foco participativo-reflexivo está em sintonia “com a carga ideológica do pós-estruturalismo, vindo a constituir-se no horizonte ético dominante da produção documentária até os dias de hoje” (RAMOS, 2005, p. 175). Esta idéia será examinada a seguir, ao tratarmos especificamente do documentário brasileiro contemporâneo.


3.2 O documentário brasileiro contemporâneo

O documentarismo brasileiro tem mostrado sua vitalidade na contemporaneidade. Abordaremos neste item as principais características desse gênero na atualidade, a partir das idéias de reflexividade e hibridismo, das implicações do uso do sistema digital, das constantes passagens entre as imagens. Também destacaremos o período de 1994-1998, chamado comumente de “cinema da retomada” e apresentaremos dados sobre a produção e o mercado do cinema documentário no Brasil, no período de 1995-2005, momento de grande expansão do gênero e de abertura do mercado cinematográfico e do público aos filmes documentários.

3.2.1 Passagens entre imagens: reflexividade e hibridismo no documentário contemporâneo

A produção contemporânea de imagens remete-nos, fundamentalmente às passagens entre as imagens, pois que pressupõe, como elemento constituinte, o cruzamento de meios, códigos e linguagens, combinados e sobrepostos a tal ponto que já não se torna possível analisá-los em suas formas específicas tradicionais. As passagens dizem respeito, portanto, ao espaço do “entre”, aquele situado no meio de uma coisa e outra, impreciso, variável, permeado de interações. No cinema, sua utilização coincide com o surgimento das tendências reflexivas no final dos anos 1960, e do suporte videográfico, na década de 1970, se aprofundando com a possibilidade do registro digital da imagem.

Para Raymond Bellour, o entre-imagens é um espaço ao mesmo tempo físico e mental, portanto múltiplo, que opera entre as imagens, sendo variável e disperso. “É assim que as imagens nos chegam agora: o espaço em que é preciso decidir quais são as imagens verdadeiras. Ou seja, uma realidade do mundo, por mais abstrata e virtual que seja, uma realidade da imagem como mundo possível.” (BELLOUR, 1997, p. 15). Segundo este autor, o desenvolvimento de certos princípios, como o congelamento da imagem ou tomada fotográfica do filme, elementos presentes no cinema desde os anos 1960, nos mostram esse espaço entre as imagens. Mas o que efetivamente circunscreve essa mutação é o surgimento do vídeo, nos anos 1970, que com sua natureza eletrônica opera exatamente através de passagens, podendo incorporar duas vertentes: a televisão e o vídeo-arte.

Segundo Edmond Couchot, o próprio processo produtivo das imagens contemporâneas remete ao conceito de passagem, de tradução: as imagens revelam um caráter factual, pois só existem enquanto acontecimento, sendo “uma imagem de potencialidades infinitas, uma imagem potência de imagem”, que não depende mais do suporte, do meio. Assim, não importa se as imagens são eletromagnéticas, eletrônicas ou fotoquímicas, pois seus processos funcionam de maneira interpenetrada, em múltiplas sobreposições. “O meio já não é a mensagem pois não existe mais meio, somente trânsito de informação entre suportes, interfaces, conceitos e modelos como meras matrizes numéricas” (COUCHOT, 1993, p. 75-8), diz Couchot, problematizando a máxima de Mc Luhan.

Para Lúcia Santaella, a passagem de um modo de produção de imagens a outro é definido por três paradigmas distintivos: pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico. Em síntese, a autora observa que, dependendo da máquina de registro, a imagem fotográfica sempre implicava, até a entrada das tecnologias digitais – era pós-fotográfica –, uma relação de proximidade com os objetos reais preexistentes e isso se estendeu da fotografia ao cinema, à televisão e ao vídeo. Na imagem digital este código foi substituído pela matemática das imagens sintéticas, inteiramente calculadas por meio do computador. Portanto, não são mais imagens indexicais, “pois não opera[m] sobre uma realidade física, tal como as máquinas óticas, mas sobre um substrato simbólico: a informação (SANTAELLA, 1998, p. 166).

Citando Arlindo Machado e Edmond Couchot, Santaella sintetiza os fundamentos da imagem sintética: “O que muda com o computador é a possibilidade de fazer experiências que não se realizam no espaço e tempo reais sobre objetos reais, mas por meio de cálculos, de procedimentos formalizados e executados de uma maneira indefinidamente reiterável. É justamente nisso, isto é, na virtualidade e simulação, que residem os atributos fundamentais das imagens sintéticas” (Ibid., p.168).
Para Arlindo Machado, a intervenção do computador manifesta uma ambigüidade: de um lado dispensa a mediação da câmera e de outro abre imensas possibilidades de manipulação e metamorfose. Numa análise do vídeo digital, afirma:

É como se, após 500 anos de ditadura da imagem especular [...] e 100 anos (pelo menos) de contestação desse primado pelas vanguardas históricas, o universo das imagens caminhasse agora em direção a uma síntese, uma síntese que todavia não deixa de apontar para sua natureza necessariamente híbrida, resultado de influências distintas e às vezes contraditórias (MACHADO, 2003, p. 46).


Machado, já no início da década de 1990 apontava uma “nova cartografia das formas representativas” (MACHADO, 1993, p. 48) com a invasão da imagem eletrônica em todos os setores da produção audiovisual, e a conversão do cinema em mídia eletrônica, incorporando as tecnologias e os procedimentos do vídeo e da informática. Para o autor, duas tendências se configuravam então:

Em primeiro lugar, a imagem perde cada vez mais seus traços materiais, a sua corporeidade, a sua substância, para se transfigurar em alguma coisa que não existe senão em estado virtual, desmaterializada em fluxos de corrente elétrica. [...] Uma segunda conseqüência, derivada sobretudo dos progressos alcançados com a síntese direta da imagem em computadores gráficos, é o ocaso desse instrumento emblemático de figuração: a câmera (Ibid., p.48).

A evolução dos meios técnicos resultaria, assim, uma renovação também do cinema documentário, legitimando e confirmando as potencialidades do gênero, mas sem modificar sua identidade. Manuela Penafria afirma que a grande mudança no documentário com a incorporação das tecnologias digitais foi a possibilidade de uma construção mais interativa.

O documentário digital é um conjunto de experiências e ideias sobre um determinado tema que caminha no sentido de maior empatia, tanto por parte do documentarista, como dos que o consultam. É, também, um exercício de criatividade, para o documentarista, dada a possibilidade de conjugar diferentes elementos e de dispô-los de forma adequada aos diferentes pontos de vista. Isso é oferecido pela grande inovação do suporte digital: a interactividade (PENAFRIA, 1999, p. 101).

Porém, as transformações operadas com o registro digital não são vistas consensualmente. Para alguns, as possibilidades abertas pelas câmeras digitais, pelos softwares de tratamento e manipulação de imagens, enfim, por toda uma gama de mecanismos de captação, processamento e consumo de imagens, provocaram uma nova revolução nos meios de produção, alterando substancialmente sua identidade. Para outros, as transformações operadas nos modos de produção contemporâneos não trazem novidade e nem superam a revolução do som sincronizado e das câmeras portáteis vivida nos anos 1960.
Para Brian Winston, a introdução de um novo sistema de modulação digital com o digital vídeo (DV) não representou nenhuma mudança no documentário, além de um outro meio de registro, um novo método de produção que certamente tornou as produções mais fáceis e menos onerosas, mas que veio consolidar um ideal de “câmera na mão” existente há pelo menos quarenta anos. Para o autor, entender o DV como uma revolução é, pois, ignorar a própria história do documentário, visto que todas as mudanças efetuadas no documentário e sentidas nos filmes contemporâneos devem ser creditadas ao surgimento do cinema direto e do cinema verdade (WINSTON, 2005, p.15-16).
Winston ressalta, no entanto, como questão fundamental apresentada pelo DV, a possibilidade de trazer à tona a discussão sobre a edição, tema que tem uma tradição de silêncio responsável por manter o mito do não intervencionismo do documentário. “Devido as possibilidades de manipulação do digital, todas as formas de mediação vem à tona.” (Ibid., p.20).
Para Nichols, “como os meios digitais tornam tudo evidente demais, a fidelidade está tanto na mente do espectador quanto na relação entre a câmera e o que está diante dela. [...] Não podemos garantir que o que vemos seja exatamente o que teríamos visto se estivéssemos presentes ao lado da câmera” (NICHOLS, 2005[a], p.19).

Em síntese, podemos dizer que a tecnologia impulsiona a prática documental no sentido de uma maior diversidade desde os anos 1960 e a transição do suporte analógico para o digital vem confirmar as potencialidades do gênero, colocando em discussão tanto o processo de construção da imagem quanto de edição do material produzido.

3.2.2 Os anos 1990 e o “cinema da retomada”

A partir de 1992, após o desastre do governo de Fernando Collor de Melo, o cinema brasileiro viveu um momento chamado de “retomada”, que atingiu o cinema de ficção e estendeu-se ao documentário. Segundo Lucia Nagib, que ouviu 90 cineastas dos anos 1990, em O cinema da retomada (NAGIB, 2002), não há unanimidade para o que se viveu no período. Para alguns, como o cineasta José Joffily, o termo “retomada” divulgado pela mídia foi uma “estratégia de mercado”; para outros simplesmente a conseqüência de um acúmulo de filmes finalizados em curto espaço de tempo, produzindo uma aparência de boom.

Para alguns, o que houve foi apenas uma breve interrupção da atividade cinematográfica com o fechamento da Embrafilme, a seguir reiniciada com o rateio dos próprios recursos da produtora extinta, através do Prêmio resgate do Cinema Brasileiro. Em três seleções promovidas entre 1993 e 1994, o Prêmio Resgate contemplou um total de 90 projetos [...]. A Lei nº 8.685, conhecida como Lei do Audiovisual, promulgada em 1993, aperfeiçoando leis anteriores de incentivo fiscal, começou a gerar frutos a partir de 1995, acentuando o fenômeno (NAGIB, 2002, p. 13).

De qualquer modo, pontua Nagib, o cinema brasileiro voltou a ter atenção do público e da imprensa; “as mudanças políticas nacionais ocasionaram mudanças significativas no panorama cultural e, conseqüentemente, cinematográfico do país” (Ibid., p.14).

Para esta autora, os anos de 1994 e 1995 são de grande hibridismo na produção cinematográfica, em que se evidencia um “tom pessoal”, uma “autoria acentuada”, em filmes como A terceira margem do rio (1994), de Nelson Pereira dos Santos, Alma Corsária (1994), de Carlos Reichenbach, Carlota Joaquina (1995), de Carla Camurati, e Terra estrangeira (1995), de Walter Salles e Daniela Thomas.

Nos anos seguintes, de 1996 a 1998, Nagib verifica um aprofundamento em direção à apreensão de um Brasil real, “de um movimento de convergência para o coração de um país que precisa mostrar sua cara”, exemplificado no filme Central do Brasil (1998), de Walter Salles, considerado o “filme-símbolo da retomada” (Ibid., p.15-16). Neste filme, a autora ainda identifica uma atitude que vai se tornar recorrente no cinema brasileiro contemporâneo: “cineastas procedentes de classes dominantes dirigem um olhar de interesse antropológico às classes pobres e à cultura popular [...]. Tenta-se vencer o abismo econômico entre realizadores e seus objetos, se não com adesão, pelo menos com solidariedade” (Ibid., p.16).

Se a preocupação com a identidade nacional se constituiu no núcleo temático dos novos filmes, aproximando-os do Cinema Novo, estes não apresentaram nenhum projeto político. O sertão e a favela voltam a ser cenário, mas como “palco de dramas individuais, mais que sociais” (Ibid., p. 17). Para Jean-Claude Bernardet, um dos entrevistados de Nagib: “Havia no cinema dos anos 60 uma ligação e uma preocupação com uma proposta política que era fundamental para a sobrevivência ideológica do movimento, está proposta está absolutamente ausente nos cineastas de hoje” (Apud NAGIB, 2002, p.112).

Para Luís Alberto Rocha Melo, a expressão “retomada” abarca dois sentidos aparentemente contraditórios: ao mesmo tempo em que traduz uma idéia de continuidade, processo evolutivo e tradição cultural, comporta a fragmentação, a descontinuidade e os ciclos.

Ao longo de pelo menos dez anos, os debates em torno do cinema brasileiro vêm sendo circunscritos no interior deste duplo entendimento acerca da palavra “retomada”, o que esconde, na verdade, um paradoxo. [...] Paradoxal, no discurso da “retomada”, é que “cinema brasileiro” não quer dizer mercado de cinema no Brasil. Não quer dizer distribuição e circulação de filmes, nem comércio exibidor. Portanto, não quer dizer continuidade. O que é “retomado” no Brasil do período pós-Collor não é a atividade cinematográfica em seu conjunto (produção-distribuição-exibição), mas um determinado discurso político para legitimar a produção de filme (MELO, 2005, p.67).

Para Melo, três questões devem ser pensadas no cinema dito da “retomada”: (1) a continuidade das linhas de produção do cinema brasileiro anterior; (2) a função do produtor na construção de uma cinematografia; (3) a permanência e diluição de uma certa tradição do filme popular de gênero no cinema produzido nos últimos dez anos (1995-2005) (Ibid., p. 68).

A partir de 1996, evidenciou-se um momento de revalorização do filme documentário, catalisada com a criação do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, primeiro dedicado ao gênero no país e hoje um dos mais importantes eventos relacionados ao documentário do mundo. Um documentarista se consagra neste período: Eduardo Coutinho.

Em 1998, com o filme Santo Forte, vencedor do Festival de Cinema Brasileiro de Brasília do mesmo ano, Eduardo Coutinho “assume a liderança pública do processo de revalorização do documentário” (LABAKI, 2006, p. 78). Em seus filmes, Coutinho forjou um estilo próprio e se transformou em referência principal do cinema documentário brasileiro. Sua influência é admitida pelos próprios cineastas, como João Moreira Salles:

Eduardo concluiu há muito tempo (desde Cabra Marcado Para Morrer) que o verdadeiro objeto de um documentário não é o mundo lá fora, mas o próprio ato de filmar. [...] Tudo o que acontece nos filmes do Eduardo existe apenas porque está sendo filmado. As pessoas não diriam as coisas belas (ou tristes, comoventes, terríveis, alegres) que dizem se não fosse pela presença, diante delas, do Eduardo e da sua câmera. Ou seja: ao contrário do que acreditam oito entre dez documentaristas, o mundo não seguiria igual se o documentarista – no caso, Eduardo – não o estivesse filmando (REVISTA ÉPOCA, 2002).

Consuelo Lins oferece uma visão similar, ao dizer que Cabra marcado inaugura uma dimensão crucial do cinema de Eduardo Coutinho: a de ver o processo de filmagem como produtor de acontecimentos e personagens, decorrente da interação entre o cineasta e a realidade que está sendo produzida diante da câmera (LINS, 2004). Lins destaca que o dispositivo de revelar a equipe de produção na imagem do filme, inaugurado em Cabra marcado, foi procedimento banalizado na produção documental brasileira: “Se Coutinho trabalha duro para produzir imagens ‘raras’, sempre há o risco dessas imagens serem tomadas como fórmula, como ‘imagens de marca’, perdendo com isso sua força expressiva” (LINS, 2004, p. 13).
Eduardo Coutinho inicia-se no cinema na época do Cinema Novo, mas só se afirma como documentarista no início da década de 1980. Em 1975, é convidado pela TV Globo para o programa Globo Repórter, que realizou a época uma experiência de documentário bastante singular, com a participação de vários cineastas, como Walter Lima Jr e João Batista de Andrade, Maurice Capovilla, Hermano Penna, Sílvio Back, Jorge Bodanski, dentre outros. “Para Coutinho, o trabalho na televisão foi uma verdadeira escola. Ali aprendeu a fazer documentário, exercitou sua relação com o outro e, durante os nove anos que permaneceu no programa, teve a certeza de que era aquilo o que queria fazer na vida” (Ibid., p. 20). Desta época destaca-se o documentário Theodorico, imperador do sertão (1978).

Desde Cabra marcado, o documentarista desenvolveu um método que vem aperfeiçoando a cada filme e que, entre outros procedimentos, desconsidera a elaboração do roteiro, “prática que, para ele, desvirtua esforços e corrói o que mais preza no documentário: a possibilidade de criação de algo inesperado no momento da filmagem” (Ibid., p. 11-12). Ressalte-se, porém, que a falta o roteiro não exclui a pesquisa intensa antes das filmagens. As filmagens em espaço restrito – princípio da “locação única” – e em curto espaço de tempo são outros procedimentos consolidados nos documentários de Coutinho e iniciados no filme Santa Marta, duas semanas no morro (1987) e Boca de lixo (1992).

Santo forte (1999) representou para Eduardo Coutinho a volta ao cinema, 15 anos depois de Cabra marcado. O próprio cineasta resume assim sua condição: “Uma nota de pé de página em um livro de cinema. Em 1997 eu não existia mais como cineasta” (Cf. LINS, 2004, p. 98). Em Santo forte, Coutinho filma trajetórias religiosas numa favela do Rio de Janeiro e se concentra no encontro e na fala dos personagens. Consuelo Lins destaca que a partir de Santo forte, Coutinho explicita seus “dispositivos”, que incluem procedimentos que se repetem, como a locação única, o trabalho em vídeo e a equipe na imagem, mas que se referem essencialmente ao como filmar, sendo isto alterado de acordo com o projeto do filme:
‘Dispositivo’ é um termo que Coutinho começou a usar para se referir a seus procedimentos de filmagem. Em outros momentos ele chamou a isso “prisão”, indicando as formas de abordagem de um determinado universo. Para o diretor, o crucial em um projeto de documentário é a criação de um dispositivo, e não o tema do filme ou a elaboração de um roteiro [...] O dispositivo é criado antes do filme e pode ser: ‘Filmar dez anos, filmar de costas, enfim, pode ser um dispositivo ruim, mas é o que importa em um documentário.’ (LINS, 2004, p. 101).

Na filmografia de Coutinho, destacam-se, ainda, os documentários: Babilônia 2000 (2001), Edifício Master (2002) e Peões (2004). Em Babilônia 2000, Coutinho filmou dez dias do final do ano 2000 nas favelas de Chapéu Mangueira e Babilônia, no Rio de Janeiro, com a presença de cinco equipes de filmagem, dispositivo escolhido devido ao pouco tempo para as gravações (a maioria das imagens se fez em menos de 24h). Consuelo Lins observa que esse dispositivo é bastante inovador na história do documentário, pois questiona a idéia de autoria e discute a direção coletiva, elemento presente em outros filmes contemporâneos, como veremos no capítulo seguinte.

Em Edifício Master, Coutinho filma relatos de moradores de um prédio de apartamentos conjugados em Copacabana. O filme ganhou o prêmio de melhor documentário no Festival de Gramado em 2002 e alcançou sucesso nas telas de cinema. O último documentário produzido por Coutinho foi Peões, inicialmente uma parceria com João Moreira Salles sobre a eleição presidencial de 2002, em que o foco de Coutinho se tornou o ABC paulista e a trajetória dos operários que participaram das greves de 1978 a 1980 (LINS, 2004).

Segundo Eduardo Coutinho, o documentário é “o encontro do cineasta com o mundo, geralmente socialmente diferentes e intermediados por uma câmera que lhe dá um poder; e esse jogo é fascinante” (Apud MOURÃO; LABAKI, 2005, p. 119).



3.2.3 Notas sobre produção e mercado do filme documentário no Brasil (1995-2005)

No período de 1995 a 2005, o número de documentários produzidos no Brasil cresceu expressivamente, fato que pode ser comprovado tomando como base somente o número de inscritos no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, organizado por Amir Labaki. Nesse período, o número de inscritos saltou de 45 para 360 títulos (LABAKI, 2006, p. 10), e em 2006 chegou a 388.

Alguns filmes alcançaram no cinema um público expressivo para o gênero, mesmo que com números ainda longe dos do cinema de ficção. Como observa João Moreira Salles, essa é uma condição natural do documentário: ele é sempre periférico em relação ao cinema de ficção, e isso vale para o Brasil e vale para qualquer outro lugar do mundo (TV CÂMARA, 2005).
No Brasil, os recordes, segundo dados da Agência Nacional de Cinema (ANCINE), no relatório que abrange o período de 1995-2004, cabem aos documentários Todos os corações do mundo (1995), de Murilo Salles, visto por 265.017 pessoas; Pelé eterno, de Aníbal Massani, com público registrado de 257.932 espectadores e Surf adventures, de Arthur Fontes, com 200.853. Também se destacam os documentários Janela da Alma (2001), de João Jardim e Walter Carvalho, visto por 132.997 mil pessoas, e Edifício Master (2002), de Eduardo Coutinho, que atingiu 84.160 mil espectadores (ANCINE, 2005).

Diretamente relacionadas ao aumento da produção documentarista, estão as leis de incentivo em vigor no Brasil. Com o apoio destas, de 1995 a 1999, o Brasil produziu 116 longas-metragens, 80 documentários e cerca de 180 curtas (MOISÉS, 2000, p. A3). Sem dúvida a produção de documentários foi também facilitada com a incorporação dos recursos digitais na captação e no processamento das imagens, que reduziram os custos de produção.
Amir Labaki comenta a curva crescente dos filmes documentários nas salas de cinema nos últimos anos, em que um terço dos filmes nacionais que alcançaram distribuição comercial no período de 2004 a 2005 foi constituído por documentários: dezessete estrearam em 2004 e treze em 2005 (LABAKI, 2006, p. 12).

Considerando o aumento no número de produções, podemos hoje dizer que os documentários brasileiros contemporâneos conquistaram uma “janela do mercado” cinematográfico até então interditada ao gênero, conforme assinalou Carlos Augusto Calil. Ele comenta o fato de a tela grande ser, antes de tudo, uma estratégia para dar visibilidade ao filme, já que o cinema permite ao documentário adquirir “identidade industrial [para] depois percorrer as trilhas do mercado, com lançamentos em VHS e DVD, televisão a cabo etc.” (CALIL, 2005, p.161). Isso também serve para confirmar a existência de uma demanda por documentários por parte do público brasileiro, tendo em vista a constante exibição de documentários nos circuitos de cinema, pelo menos nos chamados “circuitos de arte” das grandes cidades brasileiras.

O documentarista João Moreira Salles concorda, porém analisa que se o documentário vai bem no cinema, na televisão ele vai muito mal. O sistema cabo ainda não está consolidado no Brasil e as tevês abertas não são consideradas parceiras da produção audiovisual independente, já que produzem internamente a maioria de seus produtos (TV CÂMARA, 2005).

Para Moreira Salles, na televisão aberta existe ainda uma outra limitação relacionada à própria linguagem do documentário, pois se os filmes não se enquadram em determinadas convenções narrativas não são considerados para veiculação na TV. A falta de espaço impede uma continuidade da produção audiovisual independente, fundamental para que se consolide no país uma tradição (Ibid.). Tudo isso parece levar a uma negação de um dos princípios fundamentais do documentário, o de ser um “tratamento criativo da realidade”, como postulado por John Grierson, um dos pioneiros do gênero na história do cinema mundial.

A aproximação dos documentários à televisão é vista, ainda incipiente, na abertura do mercado televisivo das tevês fechadas para produção e/ou veiculação desses filmes. Esta aproximação pode influenciar no maior consumo dos filmes, de qualquer forma “ainda falam para muito pouca gente”. O documentário só vai conseguir atingir os diversos segmentos da sociedade através das tevês abertas, presentes em cerca de 40 milhões de lares brasileiros. Como questiona João Moreira Salles, a TV aberta não é uma parceira da produção audiovisual independente. E isso é, para ele, uma questão política fundamental a ser resolvida, de forma a garantir a continuidade da produção: “Enquanto a televisão brasileira não for uma parceira, o cinema brasileiro andará de muletas” (Ibid.).

Levando em conta tudo isso, nos parece propício refletir sobre o próprio formato do documentário e sua destinação ao cinema, já que os dados indicam um número de projetos de produção de documentários destinados ao cinema que não têm condições reais de serem absorvidos por esse mercado. No levantamento feito por Carlos Augusto Calil junto ao Ministério da Cultura, em março de 2004 existiam 284 projetos em busca de financiamento, dos quais 207 visavam o cinema e somente 76 a televisão. Com uma média estabilizada em torno de 30 filmes por ano, a produção brasileira precisa pensar em outros mercados, imbutida aí a necessidade de se ampliar o mercado para o gênero na televisão (CALIL, 2005, p.167).

Para João Moreira Salles, a real retomada do cinema brasileiro acontece principalmente por causa do digital, que de certa maneira obriga o realizador a ser mais rigoroso, e também da TV a cabo. Mas alerta que é ilusão pensar que o documentário irá tornar-se um produto rentável. “Hoje, com o digital, projetos podem ser feitos com mais facilidade. Você pode registrar uma família, uma vila, uma casa, e ver no que vai dar. A facilidade do digital gera uma tolerância e uma complacência que irá inevitavelmente gerar a produção de muita coisa ruim. Com isso, o realizador precisa ser mais rigoroso” (Apud MENDONÇA FILHO, 2002)

Nesse breve panorama, devemos destacar o lugar da pesquisa sobre o cinema. Historicamente, a bibliografia do cinema brasileiro sempre contou com poucos títulos dedicados exclusivamente ao gênero e uma pesquisa mais vasta sobre a história do documentarismo brasileiro certamente ainda está por vir. Entretanto, com mais visibilidade na mídia e mais recursos para as produções, reinicia-se, também no Brasil, especialmente a partir da década de 1990, a reflexão teórica sobre o cinema documentário.

Nos últimos anos, somente em língua portuguesa, foram publicados diversos livros, excluindo-se artigos, críticas, dissertações, teses e reportagens à disposição, tanto no mercado editorial como nos sites de informação da Internet. “Funda-se atualmente no Brasil a primeira geração de críticos e acadêmicos versados na cultura do documentário. [...] Só em 2004-2005, nada menos de dez volumes dedicados aos documentários começaram a estabelecer uma bibliografia nacional sobre o gênero.” (LABAKI, 2006, p.11).

Além disso, vários periódicos, como Estudos de Cinema, da Socine; Cinemais; Significação, Cadernos de Antropologia e Imagem, dentre outros, e sites direcionados ao cinema, trazem constantemente artigos que analisam filmes, diretores e períodos da história do cinema. Especificamente sobre a história do cinema documentário brasileiro, destacam-se algumas iniciativas, especialmente a partir da década de 1990, como História do Cinema Brasileiro (1990), de Fernão Ramos, e Introdução ao Documentário (2006), de Amir Labaki, e muitos artigos e coletâneas, como Documentário no Brasil: tradição e transformação (2004), livro organizado por Francisco Elinaldo Teixeira.

Texto extraído de:
COLUCCI, Maria Beatriz. Violência urbana e documentário brasileiro contemporâneo. SP/Campinas: Unicamp, 2007, p.59-94 (tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Multimeios).