Marcos da história do documentário: origens e desenvolvimento do gênero

Podemos ver, nos primeiros filmes produzidos pelo cinema primitivo, as bases do que viria a ser o documentário, na medida em que combinam a capacidade de reprodução do mundo histórico feita pelas imagens cinematográficas com o fascínio dos pioneiros pela exploração dessa capacidade documental. “A combinação da paixão pelo registro do real com um instrumento capaz de grande fidelidade atingiu uma pureza de expressão no ato da filmagem documental” (Ibid., p. 118) e levou o cinema a duas direções: o “cinema de atrações”, com ênfase na exibição, e a “documentação científica”, com ênfase na reunião de provas (Ibid., p. 122).
Porém o amadurecimento de uma narrativa documental só veio se manifestar na década de 1920, considerada o primeiro sinal de identidade do cinema documentário, a partir do trabalho do americano Robert Flaherty (1884-1951) e do soviético Dziga Vertov (1895-1954). Seus métodos e seus filmes, respectivamente Nanook, of the North (1922) e O homem da câmara (1929) – sem querer estabelecer aqui qualquer tipo de aproximação entre realizadores que percorreram caminhos tão diversos –, contribuem para a afirmação do cinema documentário. Com Flaherty e Vertov,

[...] ficou definido que, no documentário, é absolutamente essencial que as imagens do filme digam respeito ao que tem existência fora dele. Esta é a principal característica do documentário. A segunda, já em estúdio, é a organização das imagens obtidas in loco [...] segundo uma determinada forma; o resultado final dessa forma é o filme. A organização força o filme a não se pautar por uma mera descrição, apresentação descaracterizada ou sucessão sem propósito aparente, das imagens obtidas in loco. O documentarista, por seu lado, é cúmplice das características anunciadas (PENAFRIA, 1999, p. 39).

Flaherty utilizou-se da sintaxe narrativa do cinema ficcional, consolidada desde os primeiros anos do século XX com D. W. Griffith, para inaugurar uma “narratividade documentária”, com método de pesquisa, filmagem e montagem. (DA-RIN, 2004, p. 47). A obra de Flaherty, bastante analisada pelos teóricos do cinema e da antropologia, recebeu diversas críticas reducionistas, centradas nos aspectos valorativos dominantes em contextos diferenciados daqueles em que foi produzida. Os questionamentos, especialmente, dos métodos de representação como “encenação” de uma realidade, conforme ressalta Fernão Ramos, deixam de considerar que Nanook é uma obra inserida num contexto ideológico “focado na valoração positiva de padrões de conduta vinculados à necessidade da preservação de tradições em vias de desaparecimento. A missão do documentário está em reproduzir/preservar essas tradições, encenando e recriando procedimentos comunitários extintos” (RAMOS, 2005, p. 169).
Em Dziga Vertov, encontramos uma posição mais radical, de recusa ao cinema de ficção. Seu trabalho, inserido nos movimentos artísticos do modernismo, foi fundamental no sentido da experimentação de novas formas estéticas e linguagens, sendo referência para muitos trabalhos ainda hoje. Também estabeleceu os princípios de um cinema verdade (kinopravda) ao defender o “cine-olho”, a filmagem da “vida de improviso”, articulada em torno de um conceito específico de montagem (BARSAM, 1992, p. 301). Da-Rin lembra que, enquanto Flaherty seguia as regras da continuidade na montagem narrativa,

Vertov seguiu o caminho oposto, baseando-se na descontinuidade. [...] A continuidade procurada é a do argumento, através de uma “cine-escritura dos fatos”. [...] Vertov descartou radicalmente a dramatização, optando por um “cinema intelectual” que não quer apenas mostrar, “mas organizar as imagens como um pensamento, de falar graças a elas a linguagem cinematográfica, uma linguagem universalmente compreendida por todos, possuindo uma considerável força de expressão” (DA-RIN, 2004, p.127).

O marco seguinte do cinema documentário ocorreu na década de 1930, com o movimento documentarista britânico e, especialmente, com o trabalho de John Grierson (1898-1972), que consolidou o documentário como gênero, com uma base institucional definida e uma proposta de linguagem que dominaria toda a produção de filmes até o início da década de 1960.
Segundo alguns historiadores do cinema, foi Grierson quem primeiro utilizou o termo documentário, em artigo do jornal New York Sun, em 1926, num comentário sobre o filme Moana, de Robert Flaherty. O termo teria sido tomado do francês documentaire, usado para designar os filmes de viagem. Amir Labaki aponta uma versão anterior: a primeira utilização do termo teria sido feita pelo escritor e fotógrafo etnográfico Edward S. Curtis, em 1913, para definir a produção narrativa não-ficcional (LABAKI, 2006).
Parece certo, conforme discute Manuela Penafria, que a afirmação do documentário passa necessariamente pelo seu reconhecimento como tal e também por uma efetiva produção de filmes, fatos que ocorreram somente na década de 1930, na Inglaterra, especialmente com a criação da Film Units, instituição subsidiada pelo governo inglês, e o trabalho do General Post Office (GPO).

O aparecimento e [a] utilização dos termos documentário e documentarista e a efectiva afirmação e desenvolvimento de uma produção de documentários por profissionais do género, liga-se, inegavelmente, a esse movimento e à sua figura mais emblemática: o escocês John Grierson (PENAFRIA, 1999, p. 45).

Para Grierson, o documentário deveria ter uma função educativa e social, podendo ser definido, antes de mais nada, como “um tratamento criativo da realidade”, conforme postulado em seus textos reunidos em First Principles of Documentary (1932). Esta visão formou uma grande geração de documentaristas que seguiram um modelo clássico de produção e marcou toda a realização de documentários até a primeira metade do século XX. Pode-se dizer que ainda segue hoje conformando muitas produções, principalmente os jornalísticos destinados à televisão.

A visão do documentário como detentor de uma “missão” caracterizada como educativa [...] delineia o sistema de valores éticos do primeiro documentário, a partir do qual o conjunto de espectadores/cineastas desses filmes estabelece valores que norteiam sua conduta com relação ao que está sendo veiculado/produzido. [...] Na escola documentarista inglesa, a dimensão educativa do documentário [...] fica claramente estabelecida, funcionando como base para formulações sobre a validade do documentário e sua função social (RAMOS, 2005, p.170-171).

Dentre os cineastas ligados à escola documentarista britânica, destaca-se o brasileiro Alberto Cavalcanti, nome que figura entre os pioneiros do gênero em diversos livros sobre a história do documentário. Cavalcanti realiza, em 1926, na França, o documentário Rien que les heures, mostrando o cotidiano de Paris numa experiência similar e precedente à de Dziga Vertov em O homem da câmera e de Walter Ruttmann, em Berlim, sinfonia da metrópole. Na Inglaterra, Cavalcanti trabalhou para o GPO, órgão onde assumiu, em 1937, a chefia da produção, após a ida de Grierson para o Canadá. Além de ter dirigido inúmeros filmes de ficção e documentários, este cineasta publicou, em 1951, o livro Filme e realidade, em que defende, entre outros pontos, que o conhecimento da realidade não é função somente do filme documentário, mas do cinema em geral (CAVALCANTI, 1976). Ressalte-se que, na década de 1950, Cavalcanti foi chamado ao Brasil para assumir a direção da Vera Cruz.
O movimento documentarista britânico consolidou o primeiro estilo do cinema documentário: “O estilo de discurso direto da tradição griersoniana [...] foi a primeira forma acabada de fazer documentário. Como convêm a uma escola de propósitos didáticos, utilizava uma narração fora-de-campo, supostamente autorizada, mas quase sempre arrogante” (RAMOS, 2005, p. 48), comumente identificada como “voz-over”ou voz-off, e considerada, como mencionado, a “voz de Deus”, no sentido de ser a detentora do saber do filme.
A partir das considerações acima, podemos concluir que o surgimento do documentário como gênero se dá somente no fim da década de 1920 e início de 1930, quando se reúnem as condições para seu reconhecimento. Bill Nichols destaca o papel de Dziga Vertov, mas defende que este, apesar deste ter promovido o documentário bem antes de Grierson, “não reuniu em torno de si um grupo de cineastas da mesma opinião e nem conseguiu nada parecido com a base institucional sólida que Grierson estabeleceu”, o que foi fundamental para dar continuidade à produção dos documentários (NICHOLS, 2005[a], p. 119).
As condições apontadas por Nichols e que justificam o aparecimento do gênero, passam por uma combinação de elementos reunidos durante os anos 1920 e início de 1930, que se relacionam ao surgimento de uma “voz” do documentário: (1) as tendências do cinema primitivo, organizado em torno do “cinema de atrações” e a “documentação científica”, já apontadas anteriormente; (2) o relato narrativo de histórias, que revela a perspectiva dos cineastas sobre o mundo imaginado e construído no filme e, conseqüentemente, sobre o mundo histórico; (3) a experimentação poética, que surge do cruzamento do cinema com as vanguardas modernistas e está ligada à ideia de fotogenia e de montagem; e (4) a oratória retórica, a mais distintiva de todas. Para o autor, é a retórica, em todas as suas formas e em todos os seus objetivos, que fornece o elemento final e distintivo do documentário. O exibidor de atrações, o contador de histórias e o poeta da fotogenia condensam-se na figura do documentarista como orador que fala com uma voz toda sua do mundo que todos compartilhamos (NICHOLS, 2005[a]).
Em meados da década de 1950 e início dos anos 1960, o cinema foi impulsionado pela revolução tecnológica das câmeras portáteis e de som sincronizado. Tais instrumentos permitiram, entre outras coisas, a realização de entrevistas de rua e a produção de novos estilos e alternativas à voz de Deus. A introdução do registro simultâneo de imagem e som, e a câmera cada vez mais leve e ágil, abriram novas possibilidades para a experimentação. A época marcou-se pelo Cinema Direto, nos Estados Unidos e pelo Cinema Verdade, desenvolvido inicialmente na França. Para Richard Barsam, estes movimentos, apesar de distintos, significaram ambos um rompimento com a tradição clássica do documentário representada pelo documentarismo britânico e por Grierson, pois construíram um novo conceito de “realidade”, influenciados principalmente pelo neo-realismo italiano e pela nouvelle-vague francesa (BARSAM, 1992).
Brian Winston resume bem a diferença entre Cinema Verdade e Cinema Direto, apoiado na definição feita por Henry Breitose de fly-on-the-wall e fly-in-the-soup, literalmente “mosca na parede” e “mosca na sopa”: a primeira observa sem ser percebida, a segunda está no centro da cena (BREITOSE, 1986). Os filmes do Cinema Verdade preconizam “o uso de equipe enxuta e se vale[m] da técnica de entrevistas registrando a presença do cineasta e do aparato fílmico”. Já o Cinema Direto “não permite o envolvimento do cineasta na ação e tem como uma de suas características a ausência de narração” (WINSTON, 2005, p.16). Para Silvio Da-Rin, as diferenças podem ser resumidas às estratégias discursivas, aos diferentes modos de representação: no Cinema Direto predomina um modo observacional, no Cinema Verdade um modo interativo.
O Cinema Direto relaciona-se a uma estética de não-intervenção iniciada nos anos 1950 na Inglaterra, com a escola documentarista britânica e o “free-cinema”; no Canadá, com o National Film Board (ou Office National du Film - ONF); e nos Estados Unidos, com a Drew Associates, produtora que têm como principais nomes o repórter-fotográfico Robert Drew e o cinegrafista Richard Leacock. Da-Rin resume este movimento em direção a um cinema de observação na descrição dos princípios da Drew Associates:

Em nome de um respeito absoluto à autenticidade das situações filmadas, o grupo da Drew Associates adotava o princípio do “som sincrônico integralmente assumido”: qualquer acréscimo à imagem e ao som originário da locação era considerado incompatível com a “realidade captada ao vivo”. Seu método de filmagem interditava todas as formas de intervenção ou interpelação [...]. A equipe devia ser reduzida ao mínimo indispensável, os equipamentos adaptados à maior portabilidade e agilidade possíveis (DA-RIN, 2004, p.137-138).

Na França, no mesmo período, foram cineastas ligados à pesquisa social, sociólogos e antropólogos, quem descobriram os equipamentos portáteis e de som sincronizado. O mito da possibilidade de não-intervenção, e da objetividade dos equipamentos estava desfeito com o que Edgar Morin chamou de cinema verdade, retomando o termo de Dziga Vertov. O filme emblemático desse momento é Crônica de um verão (1961), uma parceria entre Jean Rouch e Edgar Morin que foi fundamental para o desenvolvimento de um novo cinema, em que se modificam as relações entre cineasta, tema e espectador. Para Da-Rin, Chronique pode ser considerado o protótipo de uma nova configuração do documentário, que resultou num modo interativo de representação:

Neste filme, o “som direto integralmente assumido” engendrou conseqüências inteiramente distintas daquelas verificadas no modo observacional. Aqui é a palavra que predomina, através da conjugação de diferentes estratégias: monólogos, diálogos, entrevistas dos realizadores com os atores sociais, discussões coletivas envolvendo a crítica aos trechos já filmados e, por fim, autocrítica dos próprios realizadores diante da câmera (Ibid., p.150).

Apoiado nas “potências do falso”, de Deleuze (DELEUZE, 1990), André Parente fornece uma visão mais ampla do que se convencionou chamar cinema direto ou mesmo cinema de realidade, que inclui tendências bastante diversas, inclusive o cinema verdade. Ele explica que o termo direto foi mal compreendido pelos cineastas e teóricos dos anos 1960 e 1970 – especialmente nas críticas de L. Marcorelles e G. Marsolais[1] –, que o reduziram a uma técnica, um método de filmagem e uma “estética do real”. Mais do que isso, explica Parente, o que importava para o cinema direto era “questionar a fronteira que separa o real da ficção e a vida da representação” (PARENTE, 2000, p. 127).
O termo Cinema Direto foi proposto por Mario Ruspoli, em 1963, para designar o cinema que “filma diretamente a realidade vivida e o real”, substituindo a expressão “cinema verdade”, lançada por Edgar Morin em 1960. Com efeito,

sendo a expressão de Morin e Jean Rouch bem infeliz, a de Ruspoli se impôs rapidamente, designando e reagrupando várias tendências diferentes: o “free cinema”, da escola documentarista inglesa (1956-59), o “candid-eye”, do grupo de língua inglesa do ONF (1958-60), o “living-camera”, do grupo Drew Associates (1959-60), o “cinema do comportamenteo”, de Leacock e Pennebaker, o “cinema-verdade”, de Rouch e Morin, o “cinema espontâneo” e o “cinema vivido”, de M. Brault, P. Perrault e outros etc. (Ibid., p. 112).

Deleuze também distinguiu o cinema direto, representado pelos filmes de John Cassavetes e de Shirley Clarke; do cinema do vivido, encontrado nos filmes de Pierre Perrault, e do cinema verdade, cujo maior expoente é Jean Rouch (DELEUZE, 1990). Porém, para Deleuze, mais importante que essa distinção é perceber que a ruptura produzida no cinema dos anos 1960 não foi entre a ficção e a realidade, mas entre um modelo de narrativa apoiado na idéia de verdade e um modelo apoiado na fabulação. Assim, o próprio Cinema Verdade torna-se, na realidade, produtor de verdade: “não será um cinema da verdade, mas a verdade do cinema” (Ibid., p. 183). Antes desse período, especialmente no cinema de não-ficção, diz Deleuze, se abandonava a ficção em favor de um real, mas mantinha-se um modelo de verdade que supunha e decorria da ficção.
Os anos 1970 foram marcados por um novo período, centrado não numa mudança tecnológica, mas de estilo, na qual os filmes incorporam o discurso direto sob a forma de entrevistas. Nichols exemplifica esse estilo nos diversos filmes políticos e feministas produzidos no período, em que os participantes dos filmes davam seu testemunho diante da câmera. “Às vezes profundamente reveladores, às vezes fragmentados e incompletos, esses filmes forneceram o modelo para o documentário contemporâneo” (NICHOLS, 2005[b], p.49).
Diz Nichols que o filme de entrevistas ainda se constitui, hoje, a forma predominante dos documentários, embora se possa ver, na produção mais recente, formas mais complexas que caracterizam um novo estilo: o documentário auto-reflexivo. Esse novo

[...] documentário auto-reflexivo mistura passagens observacionais com entrevistas, a voz sobreposta do diretor com intertítulos, deixando patente o que esteve implícito o tempo todo: o documentário sempre foi uma forma de re-presentação e nunca uma janela aberta para a “realidade”. O cineasta sempre foi testemunha participante e ativa na fabricação de significados, sempre foi muito mais um produtor de discurso cinemático do que um repórter neutro ou onisciente da verdadeira realidade das coisas (Ibid., p.49).




[1] As obras referidas por André Parente são: de Louis Marcorelles, Une esthétique du réel, le cinéma direct (Unesco, 1963) e Eléments pour un noveau cinéma (Unesco, 1970); e de Gilles Marsolais, L’aventure du direct (Paris: SEGHERS, 1974).