Bill Nichols - Em que os documentários diferem dos outros tipos de filme?

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005, p. 47-71 (Cspítulo 2)


EM QUE OS DOCUMENTARIOS DIFEREM DOS OUTROS TIPOS DE FILME?

Um exercício de definição


A definição de "documentário" não é mais fácil do que a de "amor" ou de "cultura". Seu significado não pode ser reduzido a um verbete de dicionário, como "temperatura" ou "sal de cozinha". Não é uma definição completa em si mesma, que possa ser abarcada por um enunciado que, no caso do "sal de cozinha", por exemplo, diga tratar-se do composto químico de um átomo de sódio e um de cloro (NaCl). A definição de "documentário" é sempre relativa ou comparativa. Assim como amor adquire significado em comparação com indiferença ou ódio, e cultura adquire significado quando contrastada com barbárie ou caos, o documentário define-se pelo contraste com filme de ficção ou filme experimental e de vanguarda.

Se o documentário fosse uma reprodução da realidade, esses problemas seriam bem menos graves. Teríamos simplesmente a réplica ou cópia de algo já existente. Mas ele não é uma reprodução da realidade, é uma representação do mundo em que vivemos. Representa uma determinada visão do mundo, uma visão com a qual talvez nunca tenhamos deparado antes, mesmo que os aspectos do mundo nela representados nos sejam familiares. Julgamos uma reprodução por sua fidelidade ao original - sua capacidade de se parecer com o original, de atuar como ele e de servir aos mesmos propósitos. Julgamos uma representação mais pela natureza do prazer que ela proporciona, pelo valor das ideias ou do conhecimento que oferece e pela qualidade da orientação ou da direção, do tom ou do ponto de vista que instila. Esperamos mais da representação que da reprodução.

Na fotografia, percebeu-se isso rapidamente. The elements of a pictorial photograph, o guia da boa fotografia escrito por Henry Peach Robinson em 1896, advertia os iniciantes: "A ilusão imitativa é uma armadilha para o vulgo. Uma cena pode, e deve, ser representada fielmente, mas alguns artistas conseguem ver e representar mais verdades, e verdades maiores, do que qualquer transeunte conseguiria observar... O fotógrafo que vê mais representa mais verdades mais fielmente que outro." (O próprio Robinson, fotógrafo muito respeitado, às vezes combinava mais de um negativo para produzir o efeito desejado nas cópias acabadas.)

Documentário é o que poderíamos chamar de "conceito vago". Nem todos os filmes classificados como documentário se parecem, assim como muitos tipos diferentes de meios de transporte são todos considerados "veículos". Como sugerem as formulações que vimos no Capítulo 1, um documentário organizado como Ele fala deles para nós tem qualidades e afetos muito diferentes de outro, organizado como Nós falamos sobre nós para eles. No entanto, essas diferenças são apenas o começo. Como veremos, existem várias distinções entre um documentário e outro, embora, apesar delas, continuemos a pensar em todo um conjunto de filmes como documentários.

Os documentários não adotam um conjunto fixo de técnicas, não tratam de apenas um conjunto de questões, não apresentam apenas um conjunto de formas ou estilos. Nem todos os documentários exibem um conjunto único de características comuns. A prática do documentário é uma arena onde as coisas mudam. Abordagens alternativas são constantemente tentadas e, em seguida, adotadas por outros cineastas ou abandonadas. Existe contestação. Sobressaem-se obras prototípicas, que outras emulam sem jamais serem capazes de copiar ou imitar completamente. Aparecem casos exemplares, que desafiam as convenções e definem os limites da prática do documentário. Eles expandem e, às vezes, alteram esses limites.

Mais do que proclamar uma definição que estabeleça de uma vez por todas o que é e o que não é documentário, precisamos examinar os modelos e protótipos, os casos exemplares c as inovações, como sinais nessa imensa arena em que atua e evolui o documentário. A imprecisão da definição resulta, cm parte, do fato de que definições mudam com o tempo e, em parte, do falo de que, em nenhum momento, uma definição abarca todos filmes que poderíamos considerar documentários. A utilidade dos protótipos como definição é que eles geralmente propõem qualidades ou características exemplares, sem exigir que todos os documentários contenham todas elas. Nanook, o esquimó mantém-se como documentário prototípico, embora muitos filmes como ele - fundamentados na simples narrativa de aventuras para organizar os acontecimentos, no indivíduo exemplar ou representativo e na suposição de que podemos entender características culturais maiores entendendo o comportamento individual - também rejeitem o romantismo, a ênfase num meio ambiente natural desafiador e os elementos às vezes condescendentes de Nanook. Na verdade, alguns filmes de ficção, como Ladrões de bicicleta (1947), de Vittorio de Sica, também compartilham essas características com Nanook, sem, de modo algum, serem considerados documentários.
Novos protótipos, como Correio noturno ou a série Por que lutamos (1942-1945), podem rejeitar as características que predominavam anteriormente em filmes como Nanook, em favor de características novas, como o comentário em voz-over ou o desvio do ator social individual para tipos ou grupos representativos e para o desenrolar de um acontecimento, processo ou desenvolvimento histórico em termos mais amplos e impessoais (poética ou prosaicamente apresentados). Analogamente, se considerarmos A escola (1968), de Frederick Wiseman, como protótipo ou modelo de cinema observativo, notaremos que esse filme recusa qualquer forma de comentário em voz-over, embora esse recurso tenha sido considerado um dos traços mais característicos do documentário até a década de 1960.

Podemos compreender melhor como definir o documentário abordando-o de quatro ângulos diferentes: o das instituições, o dos profissionais, o dos textos (filmes e vídeos) e o do público.

A estrutura institucional

Pode parecer circular, mas uma maneira de definir documentário é dizer que "os documentários são aquilo que fazem as organizações e instituições que os produzem". Se John Grierson chama Correio noturno de documentário ou se o Discovery Channel chama um programa de documentário, então, esses filmes já chegam rotulados como documentários, antes de qualquer iniciativa do crítico ou do espectador. É o mesmo que dizer que o longa-metragem hollywoodiano é aquilo que os estúdios de Hollywood produzem. Apesar da circularidade, essa definição funciona como um primeiro sinal de que determinada obra pode ser considerada um documentário. O contexto dá esse sinal; seria bobagem ignorá-lo, mesmo que a definição não seja exaustiva. Levando em consideração o patrocinador- seja ele o National Film Board canadense, o canal de notícias Fox, o History Channel ou Michael Moore -, fazemos certas suposições acerca do status de documentário de um filme e acerca do seu provável grau de objetividade, confiabilidade e credibilidade. Pressupomos seu status de não ficção c a referência que faz ao mundo histórico que compartilhamos, e não a um mundo imaginado pelo cineasta.

Os segmentos que compõem o noticiário 60 Minutes da rede CBS, por exemplo, são em geral considerados, em primeiro lugar, exemplos de relato jornalístico, porque simplesmente esse é o tipo de programa que 60Minutes é. Supomos que os segmentos se referem a pessoas e acontecimentos reais, que os padrões de objetividade jornalística são observados, que podemos contar com o fato de que cada história será divertida e informativa, e que quaisquer alegações serão sustentadas por uma exposição verossímil de provas. Exibidos em outro cenário, esses episódios poderiam se parecer mais com melodramas ou docudramas, dada a intensidade emocional que atingem e o grau elevado de elaboração dos conflitos que se apresentam, mas essas alternativas ficam obscurecidas quando toda a estrutura institucional entra em ação para assegurar que elas são, de fato, reportagens documentais. De modo análogo, filmes exibidos nas séries do Public. Broadcasting System (PBS), como POV e Frontline, são considerados documentários, porque essas séries sempre exibem documentários. Programas do Discovery Channel são, a menos que se prove o contrário, tratados como documentários porque esse canal é dedicado a transmitir material documental. Saber de onde vem um filme ou vídeo ou em que canal ele é exibido é um importante indício de como devemos classificá-lo.

Filmes como This is SpinalTap (Rob Reiner, 1982) construíram esse tipo de estrutura institucional dentro do próprio filme, de maneira maliciosa ou irônica: o filme apresenta-se como documentário, só para revelar-se uma fabricação ou a simulação de um documentário. Se levarmos a sério essa autodescrição, acreditaremos que Spinal Tap é uma banda de rock de verdade. Como uma banda tinha de ser criada para o filme, exatamente como uma "bruxa de Blair" teve de ser criada para A bruxa de Blair, não estamos errados. O que talvez não percebamos é que nem a banda de rock nem a bruxa existiam antes da produção desses filmes. Tais obras passaram a ser chamadas de mockumentaries (falsos documentários) ou "pseudodocumentários". Muito de seu impacto irônico depende da habilidade com que, pelo menos parcialmente, nos induzem a crer que assistimos a um documentário simplesmente porque nos disseram que aquilo que vemos é um documentário.

Uma estrutura institucional também impõe uma maneira institucional de ver e falar, que funciona como um conjunto de limites, ou convenções, tanto para o cineasta como para o público. Dizer que "é óbvio" que um documentário terá um comentário em voz-over, ou que "todo mundo sabe" que um documentário deve apresentar ambos os lados da questão, é dizer o que é esperado dentro de uma estrutura institucional específica. O comentário em voz-over, às vezes poético, às vezes fatual, mas quase onipresente, era uma convenção bem estabelecida nas unidades de produção de filmes patrocinadas pelo governo e lideradas por John Grierson na Inglaterra dos anos 30. E o equilíbrio jornalístico, no sentido de não tomar partido abertamente, mas nem sempre no sentido de cobrir todos os pontos de vista possíveis, prevalece nas divisões de notícias das redes de televisão até hoje.

Durante muito tempo, achava-se natural que os documentários falassem de tudo, menos de si mesmos. Estratégias reflexivas que questionam o ato de representação abalam a suposição de que o documentário se funda na capacidade do filme de capturar a realidade. Lembrar os espectadores da construção da realidade a que assistimos, do elemento criativo presente na famosa definição de John Grierson do documentário como "o tratamento criativo da realidade", destrói a própria pretensão à verdade e à autenticidade da qual o documentário depende. Se não podemos considerar suas imagens o testemunho visível da natureza de uma parte específica do mundo histórico, podemos considerá-las testemunho do quê? Ao suprimir essa pergunta, a estrutura institucional do documentário suprime grande parte da complexidade da relação entre representação e realidade, e também adquire uma clareza ou simplicidade que deixa subentendido que os documentários têm acesso direto e verdadeiro ao real. Isso funciona como um dos principais atrativos do gênero.

Com as agências financiadoras da produção de documentários, funciona um circuito distinto de distribuidores e exibidores, que sustenta a circulação desses filmes. Essas agências operam tangencialmente às cadeias de salas de cinema dominantes, que se especializam em filmes de ficção tradicionais. Às vezes, uma organização, como as redes de notícias da televisão, produz, distribui e exibe documentários; às vezes, os distribuidores são entidades diferentes - corno, em grande medida, o Discovery Channel - e distribuidores de filmes especializados - corno Women Make Movies, New Day Filmes ou Third World Newsreel -, que adquirem documentários produzidos por outros. Outras agências, como a Corporation for Public. Broadcasting e o British Film Institute, dão apoio financeiro ao documentário, assim como a outros tipos de trabalho. Outras ainda, como a Film Arts Foundation, a Foundation for Independent Film and Video, o European Documentary Film Institute ou a International Documentary Association, oferecem apoio profissional aos próprios documentaristas, exatamente como a Academy of Motion Pícture Arts and Sciences faz pelos cineastas de Hollywood.

A comunidade dos profissionais

Os cineastas que fazem documentários, bem como as instituições que os financiam, nutrem certas suposições e expectativas sobre o que fazem. Embora toda estrutura institucional imponha limites e convenções, os cineastas não precisam acatá-las inteiramente. A tensão entre expectativas instituídas e inovação individual revela-se, com frequência, uma fonte de mudança.

Os documentaristas compartilham o encargo, auto-imposto, de representar o mundo histórico em vez de Inventar criativamente mundos alternativos. Eles se reúnem em festivais de cinema especializados em documentários, como Hot Springs (EUA), Yamagata (Japão) ou Amsterdam International (Países Baixos), escrevem artigos e dão entrevistas para os mesmos jornais, como Release Print, Documentary e Dox. Debatem questões sociais, como os efeitos da poluição e a natureza da identidade sexual, e exploram assuntos técnicos, como a autenticidade das imagens de arquivo e as consequências da tecnologia digital.

Os profissionais do documentário falam a mesma língua no que diz respeito a seu trabalho. Como outros profissionais, têm um vocabulário ou jargão próprio, que pode estender-se da conformidade de vários tipos de película a diferentes situações até as técnicas de gravação de som direto, e da cíica da observação do outro à pragmática da localização de distribuidores e da negociação de contratos de trabalho. Os documentaristas compartilham problemas diferentes, mas comuns - desde estabelecer relações criticamente válidas com seus temas até conquistar um público específico, por exemplo -, que os distinguem de outros cineastas.

Esses traços em comum dão aos documentaristas a sensação de compartilharem propósitos, apesar de competirem pelos mesmos financiamentos e distribuidores. Cada profissional molda ou transforma as tradições que herda, e faz isso dialogando com aqueles que compartilham a consciência de sua missão. Essa definição do documentário contribui para seu contorno vago, mas distinguível. Ela confirma a variabilidade histórica do modelo: nossa compreensão do que é uma documentária muda conforme muda a ideia dos documentaristas quanto ao que fazem. O que pode começar como um caso exemplar ou uma clara anomalia, como no caso dos primeiros filmes de observação - Les racquetteurs (1958), Crônica de um verão (1960) ou Primárias (1960) -, pode desaparecer como um desvio malsucedido ou, como nos exemplos citados, vir a ser considerado inovação transformadora, que leva ao estabelecimento de uma nova prática. O documentário nunca foi uma coisa só. Mais adiante, no Capítulo 5, trilharemos parte do caminho do desenvolvimento de diferentes modos de fazer documentário. Por ora, podemos usar essa história de uma ideia sujeita a mudanças sobre o que se considera documentário como sinal da qualidade dinâmica, aberta e variável do modelo. São os próprios profissionais que, em seu compromisso com instituições, críticos, temas e públicos, geram esse sentimento de mudança dinâmica.

O corpus de textos

Os filmes que compõem a tradição do documentário são uma outra maneira de definir o gênero. Para começar, podemos considerar o documentário um gênero como o faroeste ou a ficção científica. Para pertencer ao gênero, um filme tem de exibir características comuns aos filmes já classificados como documentários ou faroestes, por exemplo. Há normas e convenções que entram em ação, no caso dos documentários, para ajudar a distingui-los: o uso de comentário com voz de Deus, as entrevistas, a gravação de som direto, os cortes para introduzir imagens que ilustrem ou compliquem a situação mostrada numa cena e o uso de atores sociais, ou de pessoas em suas atividades e papéis cotidianos, como personagens principais do filme. Todas estão entre as normas e convenções comuns a muitos documentários.

Outra convenção é a predominância de uma lógica informativa, que organiza o filme no que diz respeito às representações que ele faz do mundo histórico. Uma forma típica de organização é a da solução de problemas. Essa estrutura pode se parecer com uma história, particularmente com uma história de detetive: o filme começa propondo um problema ou tópico; em seguida, transmite alguma informação sobre o histórico desse tópico e prossegue com um exame da gravidade ou complexidade atual do assunto. Essa apresentação, então, leva a uma recomendação ou solução conclusiva, que o espectador é estimulado a endossar ou adotar como sua.

The city (Ralph Steiner e Willard Van Dyke, 1939) mostra uma abordagem prototípica dessa ideia de uma lógica do documentário. Pela montagem de cenas que incluem clips cm câmera rápida sobre o frenesi da vida urbana, estabelece que a existência urbana se tornou mais um fardo do que uma alegria. O filme apresenta esse como um problema universal, que esgota a energia c o entusiasmo das pessoas pela vida. (Também tende a ignorar assuntos correlatos, como a questão de o estresse urbano estar ou não relacionado com classe ou raça.) Qual a solução? A seção final oferece uma: a comunidade suburbana, cuidadosamente planejada, em que cada família tem o espaço e a tranquilidade necessários como tônico para a grande atividade da vida urbana (o filme supõe que a família nuclear e a moradia individual cercada de terreno sejam os elementos básicos da comunidade). The city, um clássico do gênero documentário, foi financiado pelo American Institute of City Planners, um grupo com interesses reais na suburbanização da paisagem norte-americana, exatamente como The river, que defendia o trabalho da Tennessee Valley Authority (TVA), financiado pelo governo federal, como solução para a devastação provocada por inundações catastróficas, a fim de obter apoio popular para a TVA.

Uma variação do estilo problema/solução ocorre em O triunfo da vontade (1935). Discursos de líderes do partido nazista referem-se à desordem da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que apontam para si mesmos, seu partido e, sobretudo, Adolf Hitler como solução para os problemas de humilhação nacional e colapso econômico. O filme atenua os problemas reais; dedica grande quantidade de energia a instigar os espectadores (especialmente os primeiros espectadores, na Alemanha da década de 1930) a endossar os esforços do partido nazista e de seu líder para redimir a Alemanha e colocá-la no caminho da recuperação, da prosperidade e do poder. O filme pressupõe que o público contemporâneo a ele estava bem consciente da natureza e da gravidade do problema. Mais crucial para Leni Riefenstahl do que as imagens de arquivo da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, a revisão dos termos humilhantes impostos pelo Tratado de Versalhes ou a prova das privações provocadas pela inflação astronômica, foi apresentar um retrato vívido e convincente do partido nazista, e de Hitler, cuidadosamente coreografados, no melhor de sua forma.

A lógica que organiza um documentário sustenta um argumento, uma afirmação ou uma alegação fundamental sobre o mundo histórico, o que dá ao gênero sua particularidade. Esperamos nos envolver com filmes que se envolvem no mundo. Esse envolvimento e essa lógica liberam o documentário de algumas das convenções em que ele se fia para criar um mundo imaginário. A montagem em continuidade, por exemplo, que opera para tornar Invisíveis os cortes entre as tomadas numa cena típica de filme de ficção, tem menos prioridade. Podemos supor que aquilo que a continuidade consegue na ficção é obtido no documentário pela história; as situações estão relacionadas no tempo e no espaço em virtude não da montagem, mas de suas ligações reais, históricas. A montagem no documentário com frequência procura demonstrar essas ligações. A demonstração pode ser convincente ou implausível, precisa ou distorcida, mas ocorre em relação a situações e acontecimentos com os quais estamos familiarizados, ou para os quais podemos encontrar outras fontes de informação. Portanto, o documentário apóia-se muito menos na continuidade para dar credibilidade ao mundo a que se refere do que o filme de ficção.

De fato, com frequência, o documentário exibe um conjunto mais amplo de tomadas e cenas diversificadas do que a ficção, um conjunto unido menos por uma narrativa organizada em torno de um personagem central do que por uma retórica organizada em torno de uma lógica ou argumento que lhe dá direção. Os personagens, ou atores sociais, podem ir e vir, proporcionando informação, dando testemunho, oferecendo provas. Lugares e coisas podem aparecer e desaparecer, conforme vão sendo exibidos para sustentar o ponto de vista ou a perspectiva do filme. Uma lógica de implicação faz a ponte entre esses saltos de uma pessoa ou lugar para outro.

Se, por exemplo, saltamos de uma mulher em casa, sentada, descrevendo como era trabalhar como soldadora durante a Segunda Guerra Mundial, para a tomada de um estaleiro num jornal cinematográfico da década de 1940, esse corte implica que a segunda tomada ilustra o local de trabalho e o tipo de trabalho que a mulher da primeira tomada descreve. De maneira alguma o corte perturba a sequência embora não haja continuidade espacial ou temporal entre as duas tomadas.

Cortes como esse ocorrem repetidamente em The life and times of Rosie the riveter (1980), de Connie Field; eles não nos confundem, porque sustentam uma história que evolui e um argumento coerente a respeito da maneira pela qual as mulheres começaram a ser rapidamente recrutadas para postos de trabalhos deixados vagos por homens convocados peio exército e, em seguida, conforme os homens iam retornando da guerra, rapidamente desencorajadas a permanecer na força de trabalho. As tomadas ajustam-se ao que as mulheres entrevistadas por Field têm a dizer. Assistimos ao que dizem, e o que vemos serve para sustentar, aumentar, ilustrar ou, senão, relacionar as histórias contadas e a linha de argumentação que Field segue para comprovar o que as mulheres dizem.

Em vez da montagem em continuidade, poderíamos chamar essa forma de montagem de "montagem de evidência". Em vez de organizar os cortes para dar a sensação de tempo e espaço únicos, unificados, em que seguimos as ações dos personagens principais, a montagem de evidência os organiza dentro da cena de modo a dar a impressão de um argumento único, convincente, sustentado por uma lógica. Em vez de cortar de um personagem se aproximando de uma porta para o mesmo personagem entrando na sala que está do outro lado da porta, o corte mais típico do documentário seria o que passa da garrafa de champanhe em primeiro plano sendo quebrada na proa de um navio para o plano geral de um navio, talvez um navio totalmente diferente, sendo lançado ao mar. As duas tomadas podem ter sido feitas com um intervalo de anos ou mesmo em continentes diferentes, mas contribuem para a representação de um processo único e não para o desenvolvimento de um personagem individual.

Seguindo o exemplo dado por Rosie the riveter, podem-se delinear algumas escolhas para documentar um determinado tópico, como a construção naval. O filme pode (1) descrever um processo, como a construção de um navio, de maneira poética ou simplesmente cronológica; (2) apresentar um argumento sobre a construção naval - que as mulheres eram levadas a assumir o trabalho durante a Segunda Guerra Mundial e, depois da guerra, desencorajadas de continuá-lo, por exemplo; (3) enfatizar a reação do cineasta ao processo de construção naval, representando-o como um feito técnico impressionante ou um pesadelo cheio de riscos e dificuldades; ou (4) contar a história de um trabalhador individual, talvez típico, em um estaleiro, fazendo alusão aos significados mais amplos que essa história tem. Em todos os casos, a montagem tem uma função comprobatória. Ela não só aprofunda nosso envolvimento com a história que se desenrola no filme como sustenta os tipos de alegação ou afirmação que o filme faz sobre o mundo. Costumamos avaliar a organização de um documentário pelo poder de persuasão ou convencimento de suas representações e não pela plausibilidade ou pelo fascínio de suas fabricações.

Muito desse poder de persuasão vem da trilha sonora do documentário, ao passo que muito de nossa identificação com um mundo fictício e seus personagens depende das imagens que temos deles. Os argumentos exigem uma lógica que as palavras são mais capazes de transmitir do que as imagens. Às imagens faltam o tempo verbal e uma forma negativa, por exemplo. Podemos escrever um cartaz que diga "não fume", mas geralmente transmitimos essa ordem pela imagem de um cigarro cortada por uma barra transversal. A decisão de não mostrar, de modo algum, a imagem de um cigarro não transmitiria, de forma alguma, o mesmo significado que transmite um aviso com a injunção "não fume". A convenção de uma barra transversal sobre uma imagem para significar "não" é muito difícil de adaptar ao cinema. Seja no que ouvimos um narrador dizer sobre o tema do filme, no que nos dizem os atores sociais diretamente nas entrevistas, seja no que escutamos os atores sociais dizerem entre si conforme a câmera os observa, os documentários apóiam-se muito na palavra dita. O discurso dá realidade a nosso sentimento do mundo. Um acontecimento recontado torna-se história resgatada.

Como outros gêneros, o documentário passa por fases ou períodos. Países e regiões diferentes têm seus próprios estilos e tradições. Os documentaristas europeus e latino-americanos, por exemplo, favorecem formas subjetivas e abertamente retóricas, como as que encontramos em Terra sem pão, de Buñuel, ou Sans soleil (1982), de Chris Marker; ao passo que os cineastas britânicos c norte-americanos enfatizam mais as formas objetivas e observativas, no mesmo diapasão de "os dois lados de cada argumento", bem ao gosto da reportagem jornalística e do enfoque marcadamente não-intervencionista de Frederick Wiseman em filmes como A escola (1968), Hospital (1970) cModelo (1980).

O documentário, como o filme de ficção, tem seus movimentos. Entre eles, poderíamos incluir a obra de Dziga Vertov, Esther Shub, Victor Turin e outros que trabalharam na União Soviética na década de 1920 e no começo da década de 1930; o Free Cinema, na Inglaterra nos anos 50, quando Lindsay Anderson, Kare] Reisz, Tony Richardson e outros adotaram um olhar novo e não embelezado sobre a vida britânica contemporânea em filmes como Every day except Christmas (1957), Momma don’t allow (1956) e We are the Lambeth boys (1958); e o cinema observativo de pessoas como Frederick Wiseman, os irmãos Maysles e os Drew Associates (principalmente, Richard Drew, D.A. Pennebaker e Richard Leacock) nos Estados Unidos dos anos 60.

Um movimento nasce de um grupo de filmes feitos por indivíduos que compartilham o mesmo ponto de vista ou a mesma ótica. Com frequência, isso é feito conscientemente em manifestos e outras declarações, como "Nós: Variação do manifesto" e "Cine-olho", de Dziga Vertov, que declararam guerra aberta aos filmes roteirizados e representados por atores. Esses ensaios definiram princípios e objetivos a que filmes como O homem da câmera (1929) e Entuziazm (1930) deram expressão tangível. O ensaio de Lindsay Anderson na revista Sight and Sound, em 1956, "Stand up! Stand up!", exortava o documentário a um sentimento intenso de compromisso social. Ele definiu os princípios e objetivos de uma representação poética, mas enérgica, da realidade operária cotidiana liberta do senso de responsabilidade civil a fim de encontrar "soluções" para a diferença de classe, o que havia feito com que a obra produzida por John Grierson na década de 1930 parecesse uma serva das políticas governamentais britânicas de melhorias limitadas.

Os defensores e praticantes do Free Cinema buscaram um cinema livre da necessidade de propaganda do governo, do dinheiro do patrocinador e das convenções estabelecidas do gênero. Seu movimento ajudou a estimular o renascimento do longa-metragem britânico, construído em torno de princípios semelhantes aos da representação nua e crua dos operários e de uma atitude irreverente em relação às convenções sociais e cinematográficas. Os angry young men fjovens irados) da Inglaterra da década de 1950 deram-nos Saturday night and sunday morning (Karel Reisz, 1960), A solidão de uma corrida sem fim (Tony Richardson, 1962) e This sporting life (Lindsay Anderson, 1963), num espírito que se aproximava de sensibilidades bastante semelhantes às do Free Cinema da época. (Muitos dos que começaram na produção de documentários passaram para longas-metragens caracterizados como kitchen sink dramas, os dramas domésticos da classe operária.)

Além dos movimentos, o documentário tem períodos, que também ajudam a dar-lhe definição e diferenciá-lo de outros tipos de filme com movimentos e periodizações diversas. A década de 1930, por exemplo, viu grande parte da obra documental assumir a característica de jornal cinematográfico, como parte de uma sensibilidade da época da Depressão e da ênfase política renovada nas questões sociais e econômicas. Os anos 60 assistiram à introdução das câmeras portáteis leves com som direto. Os cineastas adquiriram uma mobilidade e uma receptividade que lhes permitiram acompanhar o cotidiano dos atores sociais. As opções de observar a distância comportamentos íntimos ou críticos ou de interagir de maneira mais diretamente participativa com as pessoas que representavam seus temas tornaram-se, ambas, bem possíveis. Portanto, a década de 1960 foi um período em que predominaram as ideias de um cinema rigorosamente observativo e muito mais participativo.

Nos anos 70, o documentário voltou com frequência ao passado, usando material cinematográfico de arquivo e entrevistas contemporâneas, no intuito de lançar um novo olhar sobre acontecimentos passados ou acontecimentos que conduzissem a questões atuais. (A perspectiva histórica era um elemento ausente do cinema observativo e participativo.) Vietnã, ano do porco (1969), de Emile de Antonio, serviu de modelo ou protótipo, que muitos outros imitaram. De Antonio combinou uma variedade enorme de material de arquivo com entrevistas mordazes para recontar a história do Vietnã e da guerra de maneira radicalmente discordante da versão oficial do governo norte-americano. Estes são apenas três dos filmes que se valeram do exemplo de De Antonio e o modularam para tratar de questões da história feminina: With babies and banners (1977), sobre a greve numa fábrica de automóveis na década de 1930, contada do ponto de vista das mulheres; Union maids (1976), sobre sindicatos que organizavam lutas em diferentes indústrias; e The life and times of Rosie the riveter (1980), sobre o papel das mulheres na força de trabalho durante e após a Segunda Guerra Mundial. Assim, foram também parte de uma tendência clara, nas décadas de 1960 e 1970, de contar a "história escrita pelas bases", conforme foi vivida e experimentada por pessoas comuns, mas articuladas, em vez de contar a "história das classes dominantes", baseada nos feitos de líderes e no conhecimento de especialistas.

Períodos e movimentos caracterizam o documentário, contudo uma série de modos de produzir documentários também faz isso e, assim que entram em funcionamento, permanecem como forma viável de produzir documentários, apesar de variações nacionais e de modulações de período. (O cinema de observação pode ter começado na década de 1960, por exemplo, mas permanece como recurso importante na década de 1990, bem depois do tempo em que predominou.) Os modos também distinguem o documentário de outros tipos de filme. Os modos aproximam-se dos movimentos, posto que um novo modo geralmente tem seus defensores, além de princípios e objetivos; no entanto, também costuma apresentar uma base mais ampla de apoio, de forma que diferentes movimentos podem derivar de um único modo. Este livro vai identificar seis modos principais de fazer cinema documentário. Eles serão discutidos mais a fundo no Capítulo 6.

Modo poético: enfatiza associações visuais, qualidades tonais ou rítmicas, passagens descritivas e organização formal. Exemplos: A ponte (1928), Song of Ceylon (1934), Listen to Britain (1941), Nuit et brouillard (1955), Koyaanisqatsi (1983). Esse modo é muito próximo do cinema experimental, pessoal ou de vanguarda.

Modo expositivo: enfatiza o comentário verbal e uma lógica argumentativa. Exemplos: The plow that broke the plains (1936), Trance and dance in Bali (1952), A terra espanhola (1937), Os loucos senhores (1955), noticiários de televisão. Esse é o modo que a maioria das pessoas identifica com o documentário em geral.

Modo observativo: enfatiza o engajamento direto no cotidiano das pessoas que representam o tema do cineasta, conforme são observadas por uma câmera discrcta. Exemplos: A escola (1968), Salesman (1969), Primárias (1960), a série Netsilik eskimos (1967-1968), Soldiers girls (1980).

Modo participativo: enfatiza a interação de cineasta e tema. A filmagem acontece em entrevistas ou outras formas de envolvimento ainda mais direto. Freqüentemente, une-se à imagem de arquivo para examinar questões blstóricas. Exemplos: Crônica de um verão (1960), Solovetsky vlast (1988), Shoah (1985), Le chagrin et la pitié (1970), Kurt e Courtney (1998).

Modo reflexivo: chama a atenção para as hipóteses e convenções que regem o cinema documentário. Aguça nossa consciência da construção da representação da realidade feita pelo filme. Exemplos: O homem da câmera (1929), Terra sem pão (1932), The ax fight (1971), The war game (1966), Reagrupamento (1982).

Modo performático: enfatiza o aspecto subjetivo ou expressivo do próprio engajamento do cineasta com seu tema e a receptividade do público a esse engajamento. Rejeita idéias de objetividade em favor de evocações e afetos. Exemplos: Diário inconcluso (1983), História e memória (1991), The act of seeing with one's own eyes (1971), Línguas desatadas (1989), e reality shows da televisão, como Cops (um exemplo vulgar). Todos os filmes desse modo compartilham características com filmes experimentais, pessoais e de vanguarda, mas com uma ênfase vigorosa no impacto emocional e social sobre o público.

Os modos adquirem importância num determinado tempo e lugar, mas persistem e tornam-se mais universais que os movimentos. Cada modo pode surgir, em parte, como reação às limitações percebidas em outros modos, como reação às possibilidades tecnológicas e como reação a um contexto social em mudança. Entretanto, uma vez estabelecidos, os modos superpõem-se e misturam-se. Os filmes, considerados individualmente, podem ser caracterizados pelo modo que mais parece ter influenciado sua organização, mas também podem combinar harmoniosamente os modos, conforme a ocasião. Os documentários expositivos, por exemplo, continuam sendo a forma básica, particularmente na televisão, em que a idéia de comentário em voz-over parece obrigatória, seja para a série Biography, da A&E, seja para os filmes sobre a natureza do Discovery Channel, seja para os noticiários noturnos.

Os textos do corpus a que denominamos documentário compartilham certas ênfases que nos permitem discuti-los como partes de um gênero (caracterizado por normas e convenções como lógica de organização, montagem de evidência e papel de destaque para o discurso voltado para o espectador), que, por sua vez, divide-se em movimentos, períodos e modos diferentes. Nesses termos, o documentário mostra-se um dos gêneros mais duradouros e variados, com muitos enfoques diferentes para o desafio de representar o mundo histórico. Esses enfoques apresentam muitas das características dos filmes de ficção comuns, como a narração de histórias, mas permanecem suficientemente distintos para constituir um domínio próprio.

O conjunto dos espectadores

A última forma de considerar o documentário é em relação ao público. As instituições que patrocinam documentários também patrocinam filmes de ficção; os documentaristas também fazem filmes experimentais ou de ficção; as próprias características dos filmes podem ser simuladas num contexto ficcional, como deixam claro obras como No lies (1973), David Holzman’s diary (1968) e Homenagem a Bontoc (1995). Em outras palavras, aquilo que delineamos com esmero como o domínio do documentário tem limites permeáveis e aparência camaleônica. A sensação de que um filme é um documentário está tanto na mente do espectador quanto no contexto ou na estrutura do filme.

Que suposições e expectativas caracterizam nossa idéia de que um filme seja um documentário? O que trazemos para a experiência de assistir a um filme que seja diferente quando deparamos com o que consideramos ser um documentário e não outro gênero de filme? No nível mais fundamental, trazemos a suposição de que os sons e as imagens do texto se originam no mundo histórico que compartilhamos. Em geral, não foram concebidos e produzidos exclusivamente para o filme. Essa suposição se baseia na capacidade da imagem fotográfica, e da gravação de sons, de reproduzir o que consideramos serem as características distintivas daquilo que foi registrado. Que essa é uma suposição, estimulada por características específicas de lentes, emulsões, óptica e estilos, como o realismo, fica cada vez mais claro se temos em mente a capacidade de sons e imagens produzidos digitalmente alcançarem um efeito semelhante: o som que ouvimos e a imagem que vemos parecem possuir as características daquilo que os produziu.

Os instrumentos de gravação (câmeras e gravadores) registram impressões (visões e sons) cora grande fidelidade. Isso lhes dá valor documental, pelo menos no sentido de documento como algo motivado pelos eventos que registra. A idéia de documento é aparentada à idéia da imagem que serve como índice daquilo que a produziu. A dimensão indexadora de uma imagem refere-se à maneira pela qual a aparência dela é moldada ou determinada por aquilo que ela registra: a fotografia de um menino segurando um cachorro exibe, em duas dimensões, uma analogia exata da relação espacial entre o menino e o cachorro em três dimensões; uma impressão digital exibe exatamente o mesmo padrão de espiras que o dedo que a produziu; marcas num projétil deflagrado têm uma relação indexadora com o cano da arma por onde o projétil passou. A superfície da bala "grava" sua passagem através do cano da arma com uma precisão que permite à ciência forense usá-la como prova documental em um determinado caso.

Analogamente, sons e imagens cinematográficos usufruem de uma relação indexadora cora o que registram. Aquilo que registram, com as decisões e intervenções criativas do cineasta, é o que produz os sons e imagens cinematográficos. O cineasta pode filmar o menino e o cachorro com uma teleobjetiva ou uma grande angular, com uma câmera fixa num tripé ou uma câmera portátil que se move lentamente para a esquerda, com filme colorido e filtro vermelho ou com filme preto-e-branco. Cada variação nos diz alguma coisa sobre o estilo do cineasta. A imagem é um documento desse estilo; ela é produzida por ele e dá mostras claras da natureza do envolvimento do cineasta com seu tema, mas cada variação também nos diz alguma coisa sobre o menino e o cachorro, algo que depende diretamente da relação real, física, entre essas duas entidades: é um documento não só do que, uma vez, esteve diante da câmera, mas também da maneira pela qual a câmera os representou. Como público, ao assistir a documentários, estamos especialmente atentos às formas pelas quais som e imagem testemunham a aparência e o som do mundo que compartilhamos. É essa característica de relação íntima com o ambiente real e seus habitantes, especialmente com os dois personagens principais, Arthur Agee e William Gates, o que faz de Basquete blues uma obra de significado considerável.

No entanto, essa relação indexadora é verdadeira tanto na ficção como na não-ficção. De fato, o distribuidor de Basquete blues montou uma campanha para fazer a Motion Picture Academy of Arts and Sciences indicar o filme não para melhor documentário, mas para melhor filme. A campanha fracassou, mas sublinhou a natureza permeável, e frequentemente arbitrária, das distinções rígidas entre ficção e documentário. A câmera documenta a textura da voz de um indivíduo, quer a de Dustin Hoffman em A morte do caixeiro viajante, quer a de Paul Brennan em Saksman, dos irmãos Maysles. É por isso que podemos dizer que todos os filmes são documentários, sejam eles documentários de satisfação de desejos, seja de representação social. Entretanto, na ficção, desviamos nossa atenção da documentação de atores reais para a fabricação de personagens imaginários. Afastamos temporariamente a incredulidade em relação ao mundo fictício que se abre diante de nós. No documentário, continuamos atentos à documentação do que surge diante da câmera. Conservamos nossa crença na autenticidade do mundo histórico representado na tela. Continuamos a supor que o vínculo indexador do som e da imagem com o que é gravado atesta o envolvimento do filme num mundo que não é inteiramente resultante de seu projeto. O documentário re-apresenta o mundo histórico, fazendo um registro indexado dele; ele representa o mundo histórico, moldando seu registro de uma perspectiva ou de um ponto de vista distinto. A evidência da re-apresentação sustenta o argumento ou perspectiva da representação.

Supomos que os sons e as imagens do documentário tenham a autenticidade de uma prova, mas temos de desconfiar dessa suposição. Devemos sempre avaliar o argumento ou perspectiva em bases que incluam, mas ultrapassem, a exatidão fatual. As tomadas de vítimas e sobreviventes de campos de concentração em Nuit et brouillard, de Alain Resnais, têm a mesma aparência do que teríamos visto se estivéssemos lá, porque a imagem cinematográfica é um documento da aparência desses indivíduos no momento em que foram filmados durante a Segunda Guerra Mundial e no fim dela. O ponto de vista do filme sobre esses acontecimentos, no entanto, difere consideravelmente de Memorandum (Beryl Fox, 1965), de Shoah (Claude Lanzmann, 1985) ou de The last days (James Moll, 1998). Mesmo que pudéssemos excluir os efeitos especiais, a manipulação digital e outras formas de alteração que permitem que uma imagem fotográfica dê um testemunho falso, a autenticidade da imagem não torna um argumento ou ponto de vista necessariamente superior a outro.

Quando supomos que um som ou uma imagem tem uma relação indexadora com sua fonte, essa suposição tem mais influência num filme que consideramos documentário do que num filme que consideramos ficção. É por essa razão que talvez nos sintamos ludibriados quando ficamos sabendo que uma obra que pensávamos ser de não-ficção se mostra afinal fictícia. A linha que divide as duas talvez seja imprecisa ou vaga, mas, mesmo assim, costumamos crer em sua realidade. Portanto, No lies irrita aqueles que consideram má-fé do diretor a criação de uma ficção que finge ser um documentário: acreditamos que poderíamos ter observado esse acontecimento histórico por nós mesmos, só para constatar que o que teríamos observado era a construção de uma ficção, ainda que ela seja uma ficção planejada para imitar as características de um documentário.

O peso que atribuímos à qualidade indexadora de som e imagem, a suposição que adotamos de que um documentário oferece prova documental na tomada, ou na palavra dita, não se estende automaticamente ao filme todo.

Geralmente, entendemos e reconhecemos que um documentário é um tratamento criativo da realidade, não uma transcrição fiel dela. Transcrições ou registros documentais estritos têm seu valor, como nos vídeos de sistemas de segurança ou na documentação de um acontecimento ou situação específica, como o lançamento de um foguete, o progresso de uma sessão terapêutica ou a apresentação de uma peça ou de um evento esportivo em particular. Entretanto, costumamos ver tais registros estritamente como documentos ou "simples filmagem", não como documentários. Os documentários reúnem provas e, cm seguida, utilizam-nas para construir sua própria perspectiva ou argumento sobre o mundo, sua própria resposta poética ou retórica para o mundo. Esperamos que aconteça uma transformação da prova em algo mais do que fatos comuns. Ficamos decepcionados se isso não acontece.

Entre as suposições que trazemos para o documentário, então, está a de que os sons e tomadas individuais, talvez mesmo cenas e sequências, terão uma relação extremamente indexadora com os acontecimentos que representam, mas que o filme todo deixará de ser um documento ou transcrição pura desses acontecimentos para fazer um comentário sobre eles ou para dar uma opinião sobre eles. Os documentários não são documentos no sentido estrito do termo, eles se baseiam na característica documental de alguns de seus elementos. Como público, esperamos ser capazes tanto de crer no vínculo indexador entre o que vemos e o que ocorreu diante da câmera como de avaliar a transformação poética ou retórica desse vínculo em um comentário ou ponto de vista acerca do mundo em que vivemos. Adivinhamos uma oscilação entre o reconhecimento da realidade histórica e o reconhecimento de uma representação sobre ela. Essa expectativa distingue nosso envolvimento com o documentário de nosso envolvimento com outros gêneros de filme.

Essa expectativa caracteriza o que poderíamos chamar de "discursos de sobriedade" em nossa sociedade. Essas são as maneiras que temos de falar diretamente de realidades sociais e históricas, como ciência, economia, medicina, estratégia militar, política externa e política educacional. Quando entramos em uma estrutura institucional que patrocina essas maneiras de falar, assumimos um poder instrumental: o que dizemos e decidimos pode afetar o curso dos acontecimentos e acarretar consequências. Essas são maneiras de ver e falar que são também maneiras de fazer e atuar. O poder atravessa-as. Um ar de sobriedade cerca esses discursos, porque eles raramente são receptivos à extravagância ou à fantasia, a personagens de "faz-de-conta" ou a mundos imaginários (a menos que sirvam de simulações úteis do mundo real, como nos simuladores de vôo ou nos modelos econométricos de comportamento comercial). Eles são veículos de ação e intervenção, poder e conhecimento, desejo e vontade, dirigidos ao mundo que fisicamente habitamos e compartilhamos.

Como esses outros discursos, o documentário reivindica uma abordagem do mundo histórico e a capacidade de intervenção nele, moldando a maneira pela qual o vemos. Embora o cinema documentário não possa ser aceito como um igual da investigação científica ou das iniciativas de política externa (era grande parte, porque, como meio baseado na imagem, aos documentários faltam características importantes do discurso falado e escrito, como a iminência e espontaneidade do diálogo ou a lógica rigorosa do ensaio escrito), esse gênero ainda preserva uma tradição de sobriedade era sua determinação de influenciar a maneira pela qual vemos o mundo e procedemos nele.

Por essa razão, a ideia de "aula de história" funciona como urna característica frequente do documentário. Esperamos mais do que uma série de documentos; esperamos aprender ou nos emocionar, descobrir as possibilidades do mundo histórico ou sermos persuadidos delas. Os documentários recorrem às provas para fazer de uma reivindicação algo como a afirmação "isto é assim", acoplada a um tácito "não é mesmo?". Essa reivindicação é transmitida pela força retórica ou persuasiva da representação. A batalha de San Pietro, por exemplo, defende que "a guerra é o inferno" e convence-nos disso com provas como uma série de soldados mortos em primeiro plano, em vcz de usar, digamos, um único plano geral do campo de batalha, o que diminuiria o horror e talvez aumentasse a nobreza da luta. A força de uma visão como essa, em primeiro plano, tem um impacto, ou uma "maldição indexadora", bastante diferente das mortes encenadas em filmes de ficção como Além da linha vermelha (Terrence Mallick, 1998) ou O resgate do soldado Ryan (Steven Spielberg, 1998), que também ponderam o custo humano da guerra. As representações podem ser semelhantes, mas o impacto emocional de imagens de mortos e moribundos em primeiro plano muda consideravelmente quando sabemos que não há ponto em que o diretor possa dizer "Corta!" e as vidas possam ser recuperadas.

Assim, os públicos vão ao encontro dos documentários com a expectativa de que o desejo de saber mais sobre o mundo será satisfeito durante o correr da fita. Os documentários invocam esse desejo de saber quando invocam um objeto histórico e propõem sua própria variante sobre a aula de história. Como aconteceu uma determinada situação (pobreza entre lavradores migrantes em Harvest of shame [1960], degradação da terra cultivável em The plow that broke the plains)? Como funciona essa instituição (em A escola ou Herb Schiller reads the New York Times [1982])? Como se comportam as pcssoas em sítuações de estresse (recrutas mulheres durante treinamento básico cm Soldier girls [1980]; objetos de experiências durante testes de obediência que poderiam prejudicar outras pessoas ern Obedience [1965])? Que tipo de dinâmica interpessoal acontece num contexto histórico concreto (durante as campanhas de John F. Kennedy e Herbert Humphrey para as primárias presidenciais do Partido Democrata em 1960 em Primárias; entre membros de uma família, todos trabalhando pelo sucesso de uma pequena pizzaria em Family business [1982])? Qual é a fonte de um determinado problema e como devemos abordá-lo (habitação inadequada para trabalhadores em Housing problems [1935]; história colonia) e exploração na Argentina em La hora de los hornos [1968])? Por que motivos deveriam os homens lutar (a série Por que lutamos, sobre as razões para a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial; Peoples war [1969], sobre as razões norte-vietnamitas para tentar unificar o Vietnã e se opor à intervenção norte-americana)? Como os integrantes de uma cultura diferente organizam suas vidas e expressam seus valores sociais (entre os danis das montanhas da Nova Guiné em Dead birds [1963]; entre os turkanas do Quênia em Wedding camels [1980])? O que acontece quando uma cultura encontra outra, particularmente quando os poderes ocidentais e coloniais encontram pretensos povos primitivos (pela primeira vez, na Nova Guiné da década de 1930, em First contact [1984]; de maneira recorrente ao longo do rio Sepic na Nova Guiné, quando turistas encontram nativos em Cannibal tours [1988])?

O vídeo e o filme documentário estimulam a epistefilia (o desejo de saber) no público. Transmitem uma lógica informativa, uma retórica persuasiva, uma poética comovente, que prometem informação e conhecimento, descobertas e consciência. O documentário propõe a seu público que a satisfação desse desejo de saber seja uma ocupação comum. Aquele que sabe (o agente tem sido tradicionalmente masculino) compartilhará conhecimento com aqueles que desejam saber. Nós também podemos ocupar a posição daquele que sabe. Eles falam sobre eles para nós, e nós obtemos prazer, satisfação e conhecimento como resultado.

Essa dinâmica tanto propõe questões como responde a elas. Podemos perguntar: quem somos nós, que podemos vir a saber alguma coisa? Que tipo de conhecimento é esse que os documentários proporcionam? Que uso nós, e os outros, deveríamos fazer do conhecimento que o documentário proporciona? O que sabemos e a maneira pela qual passamos a acreditar no que sabemos são assuntos de importância social. Poder e responsabilidade residem no conhecimento; o uso que fazemos do que aprendemos vai além de nosso envolvimento com o documentário como tal, estendendo-se até o engajamento no mundo histórico representado nesses filmes. Nosso engajamento neste mundo é a base vital para a experiência e o desafio ao documentário.